Educação e acesso à Cultura
Talvez um dos maiores desafios civilizacionais dos nossos tempos – e não me refiro apenas ao Brasil – seja a criação de um modelo educacional democrático que permita aos estudantes 1) conhecer e discutir o que são e o que não são Democracias; 2) ter acesso à noção de “Cultura” e à algumas ideias culturais de forma diacrônica (ou seja, seu aparecimento ao longo do tempo); 3) fornecer aos estudantes subsídios para a construção de seu pensamento crítico assim como para o desenvolvimento de sua capacidade criativa e 4) dar a eles a consciência de que vivem em sociedade e que têm responsabilidades com o interesse público. Em outras palavras, dar a eles a noção de que existem interesses individuais e interesses públicos, e que estes precisam dialogar e buscar alguma harmonia.
Sem isso, como imaginar formar cidadãos que consigam desenvolver suas subjetividades ao, mesmo tempo, participar – e saber da importância de participar – do aprimoramento de sua sociedade e, num outro patamar, do próprio planeta? Isso sem falar na construção da consciência de que existem diferentes modelos culturais e de pontos de vista válidos a respeito dos assuntos da vida e do mundo e que é preciso e civilizado estabelecer o diálogo entre eles.
Sei que são assuntos imensos e o espaço curto, mas gostaria de trazer alguns poucos pontos de discussão.
Para começar, é preciso escapar da ideia que enxerga a cultura apenas pelo viés antropológico. Por esse ponto de vista, cultura significaria, em resumo, os costumes, crenças e padrões morais, as línguas, sistemas familiares, modelos de economia, a organização do poder dentro de um certo grupo social e coisas assim. Neste sentido, tudo é cultura.
Não seria importante que os estudantes tivessem na escola uma noção de que, primeiro, existem diferentes culturas para, num segundo plano, ter acesso a algumas questões culturais de caráter filosófico desenvolvidas no Ocidente ao longo do tempo? Falo em Ocidente porque o Brasil fica no Ocidente e isso também precisa ficar claro. Naturalmente existem outros lugares e modelos culturais e estes podem trazer novas e ricas questões. O desconhecimento deste fato nada mais é do que uma das sementes da xenofobia e do racismo, entre outros males como a ideia bisonha de que existem “raças superiores” e “raças inferiores” (!)
É relevante, em todo o caso, que os estudantes sejam levados a compreender que é possível pensar em culturas como as manifestações sociais, filosóficas, científicas e políticas que vêm ocorrendo ao longo do tempo em determinados espaços ou contextos.
A política tem tamanha complexidade que é melhor deixar para discutir outro dia.
Para ficar nas questões filosóficas e culturais ocidentais, o filósofo Giambattista Vico (1668-1744), por exemplo, acreditava que o homem só consegue compreender, de fato, aquilo que ele constrói ou fabrica. Quem concorda? Quem discorda? Vamos discutir?
Por outro lado, valeria a pena discutir como a literatura e as artes e, em paralelo, as ciências, têm caminhado juntas ao longo da história.
Penso, para ficar em dois exemplos, no que aconteceu com a literatura de ficção e poesia do Ocidente, assim como com a ciência, quando, no fim do século XIX, surge e se alastra, a partir de William James (1842-1910), Sigmund Freud (1856-1939) entre outros, a ideia de que o ser humano tem uma dimensão inconsciente. Ou, ainda pensando na arte, como a pintura ocidental que, ao longo dos tempos, quase sempre buscou retratar a realidade, lidou com a invenção da fotografia. Penso em mostrar aos alunos obras do Impressionismo e do Cubismo. Ou como lidou com a ideia de inconsciente. Penso em mostrar a eles obras do Surrealismo. Que tal tentar obter informações para discutir um pouco esses assuntos?
Ou que tal pensar nas diferentes visões do que seja a ciência no decorrer dos séculos? Penso em discutir um pouco a ideia de mito, como uma forma de tornar interpretável a vida e o mundo. A ciência não é também uma forma de tornar interpretável a vida e o mundo? Penso no dia em que se descobriu que o Sol não gira em torno da Terra, mas, sim, é o contrário. Ou na descoberta de que existem milhões de galáxias e não apenas uma, com a gente no centro. Ou ainda que certas doenças nunca foram causadas pelo diabo, feitiços e magias, mas, sim, por razões físicas e naturais.
Como pano de fundo da discussão acima, seria interessante pensar um pouco em como funcionam as culturas baseadas na escrita (saberes, descrições, mapas e crenças fixadas no papel) e culturas orais (saberes, descrições, mapas e crenças fixadas na memória). Vale lembrar que a chamada “cultura popular” é marcada pela oralidade. Dou um exemplo: como o conhecimento é transmitido nas culturas que partem da escrita e nas culturas que partem da oralidade. Outro exemplo: o improviso, que varia em cada apresentação, é um recurso da cultura popular e, em geral, rejeitado pela cultura fixada por textos. Um contador de histórias pode ler o texto ou dizer o texto de memória, o que requer improviso. Que tal discutir esses assuntos?
Esclareço que não imagino nenhuma erudição fora de lugar ou decretar “verdades”, mas, ao contrário, de fazer com que os estudantes percebam que estão diante de amplos e complexos processos culturais, em construção permanente, processos que, por sua vez, se adaptam ou contrariam e renovam as visões de mundo de cada época. E que é preciso reconhecer que sobre tais processos continuamos com algumas certezas e muitas dúvidas.
Como, em todo o caso, estudantes podem entrar e sair da escola sem saber e poder discutir, pelo menos um pouco, o que são culturas no sentido de manifestações sociais e históricas necessariamente marcadas pelo conhecimento de determinada época num determinado contexto?
Outro ponto básico para discussão, creio, é a questão do que é, ou poderia ser, algo que pode ser chamado de “processo civilizatório”.
Quando num jogo de futebol em pleno século XXI, torcedores partem para atacar a torcida adversária, essa gente está abandonando um mínimo de civilidade e assumindo um comportamento primitivo, irracional e animalesco, típico de homens das cavernas. Ou como, em pleno século XXI podem existir pessoas analfabetas – excluídas de um mínimo de cidadania – que habitam favelas com esgoto a céu aberto e que por vezes passam fome. Algo na nossa sociedade não está muito errado? Que tal abordar esse assunto?
Mais um ponto de discussão importante, creio, diz respeito à “racionalidade”. Para a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), a racionalidade pode ser descrita simplesmente como “o cálculo das consequências”. Em outras palavras, ela concorda com o que diz a cultura popular: “quem planta, colhe o que planta”.
Até crianças pequenas podem ser introduzidas a essa visão da “racionalidade” e isso será muito bom para elas, assim como pode ser bom para todos nós, independentemente de faixas etárias.
Não seria importante discutir na escola o que pode ou não pode ser considerado racional e civilizado?
Neste sentido, as ideias do sociólogo Norbert Elias (1897-1990) podem ser muito enriquecedoras e produtivas para o desenvolvimento da consciência, não apenas dos estudantes, mas de todos nós.
Para Elias, é preciso dizer logo, nada indica que estejamos indo rumo à civilização. Os estudantes precisam saber desde cedo que, segundo este grande sociólogo e pensador, as “forças civilizatórias” e as “forças descivilizatórias” vivem em permanente combate. Dou um exemplo: a ciência e a técnica trouxeram mais saúde e conforto aos homens. Trouxeram também a poluição e a crescente destruição do meio ambiente.
A administração dessas “forças civilizatórias” e “descivilizatórias” naturalmente é algo muito complexo, que diz respeito a todos nós. Está na cara de que isso precisaria ser discutido nas escolas!
Segundo Norbert Elias, civilização tem a ver com um certo comportamento humano e corresponde, em suma, a 1) buscar um autocontrole razoável e responsável de cada indivíduo, para que possamos viver em sociedade e 2) buscar a capacidade humana de se identificar (de sentir empatia) com outros seres humanos de alguma forma diferentes, seja culturalmente, seja por motivos étnicos ou outros.
Nesses termos, vale notar, civilização representa humanização, no sentido da identificação e não da diferenciação entre seres humanos.
Não seria papel fundamental das escolas buscar a humanização e a busca pelos pontos de identificação e empatia entre seus alunos e, num outro plano, entre seus alunos e o mundo em que vivem?
Mais que isso. Creio que cabe à escola mostrar aos estudantes a seguinte dicotomia: literalmente todos os seres humanos são, ao mesmo tempo, indivíduos com suas questões subjetivas e interesses individuais e, por outro lado, seres sociais pois todos, também literalmente, pertencemos e dependemos da sociedade seja para viver, seja para o nosso desenvolvimento pessoal, seja para construir um futuro mais civilizado para os que ainda não nasceram.
As escolas têm demonstrado e discutido com seus alunos essa contradição humana essencial?
Trago para complicar, como já trouxe em outros artigos, algumas ideias do filósofo e democrata Richard Rorty (1931-2007). Sobre os elos entre racionalidade e ética, segundo ele, a única noção de racionalidade de que necessitamos, pelo menos na filosofia moral e social, é a situação em que as pessoas nunca digam: “meus interesses atuais determinam que você concorde com meu ponto de vista”, mas, sim, que “minhas crenças centrais, aquilo que de fato acredito e determina minha identidade como ser humano, sugerem que você deveria concordar com meu ponto de vista.”
Rorty propõe um conceito que interessa muitíssimo à Educação: a “busca pelo progresso moral”. Segundo ele “...existe um progresso moral [que] se dá em direção à maior solidariedade humana (...).”
E tal progresso é, nas palavras de Rorty, “uma questão de empatias e de capacidade de identificação entre as pessoas ou de levar em conta necessidades alheias cada vez mais amplas”.
São exemplos de “progresso moral”, entre outros:
– a disseminação da alfabetização.
– a repulsa ao racismo e à xenofobia.
– a tolerância às diversas práticas religiosas.
– o respeito às diferenças humanas, inclusive as de cunho sexual.
– a rejeição a qualquer tipo de guerra.
– a busca pela igualdade das oportunidades entre todos os cidadãos.
– a luta pela preservação do meio ambiente e contra o aquecimento global, e por aí vai.
Creio que o tal “progresso moral” deveria ser visto como uma cultura, um conhecimento que pode e deve ser ensinado a escola.
Sobre este assunto, sempre lembro de uma entrevista dada há muitos anos pelo grande poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Segundo ele, a poesia, no fundo, “sempre diz a verdade”. Em outras palavras, para João Cabral, a poesia tem a ver com as crenças centrais, com a subjetividade e com a identidade humana do poeta. Algo similar ao que dizia Richard Rorty sobre a “filosofia moral”. Outra coisa, nesta visão, é simulacro, não poesia. É desonestidade moral e intelectual.
Vivemos cercados de simulacros por tudo o quanto é lado, dentro e fora da poesia. Trocando em miúdos, é preciso separar a noção preciosa de Cultura de produtos comerciais sem outro interesse que não seja o lucro de seus patrocinadores. Neste campo, qualquer lixo serve, contanto que dê para faturar uma graninha.
Imagine um trabalho (ou o próprio sentido de nossas vidas) criado tendo em vista apenas a lógica do lucro, o interesse econômico, mesmo que para isso deixe de partir da identidade humana e moral concreta de seu criador! É o que mais se vê por aí, num processo de franca mediocrização, alienação, desumanização e mercantilização do homem e sua cultura.
A escola, a meu ver, deveria ser o espaço ideal para que discussões como essas germinassem e florescessem! Trata-se de desenvolver a subjetividade, o pensamento crítico, a sensibilidade e a cidadania de nossos estudantes.
O texto ficou muito grande e vou parar por aqui. Tentei trazer alguns pontos que julgo importantes para discussão nas escolas independentemente de séries ou de matérias.
📝Publicado, aqui com ajustes, em 28/11/2023 no https://www.facebook.com/rjdazevedo.
🖼️ Imagem do livro “The epic of man”, Time-Life International, 1962.
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