Trago na boca a memória do meu fim
O enredo do livro “Trago na boca a memória do meu fim” acontece no Brasil do século XVI. Um dos personagens é um fidalgo defunto de nome Gil Vianna. Preciso dizer que por essa época, acreditava-se que mortos podiam reaparecer por aí, trazendo notícias, pedidos e cobranças. A voz que conta a história e o morto-vivo estão, neste momento, viajando pelo mato em busca de um velho de nome Carvalho que, segundo disseram, poderia dar informações a respeito do padre Tomé Alonso, aquele que, de fato, ambos estão procurando. No local indicado, encontram um velho, cercado de macacos, trepado no alto de uma árvore. Os capítulos 23 e um pouco do 24 narram esse inesperado encontro.
[23]
– Boas tardes, meu bom amigo. Andamos por este escarapatoso e arisco matagal em busca de um foão de nome Carvalho. É porventura ele vosmecê? — preguntei do chão aos gritos com as duas mãos na boca em forma de concha.
Sem dizer palavra, desceu com grande ligeireza e facilidade o homem pelo tronco da árvore, tal como se fosse ele mesmo um bugio. De pele enrugada, sem camisa, baixo e troncudo, embora fosse já alcançado e cheio de anos, parecia o gajo ainda jovem e mui forte. Trazia a barba branca curta e cerrada a cobrir o rosto redondo, tisnado pelo sol, e dois olhos claros, verdes e vivos debaixo das grossas sobrancelhas.
— Chamo a mim mesmo de Campos, assim como costumam chamar tanto os que me conhecem como os que me desconhecem. Quem são vosmecês, de onde vêm, a que senhor servem e para que servem, se é que para alguma cousa ainda servem?
Senti na alma uma ponta de espanto e desapontamento.
Pelo visto, estávamos enganados de meio a meio e, por dias, seguimos por uma trilha de engodos rumo à moradia da pessoa errada.
— Somos da parte do capitão Silveira Nunes, grande e afazendado senhor de chãos e glebas que ficam nos derredores das vilas de São Paulo de Piratininga e de Taubaté — disse-lhe o defunto. — Andamos nós outros à cata de um cristão de nome Carvalho.
— Segundo nos contou o mulato Pereirinha quando passamos pelo porto de Araritaguaba — completei eu —, se cruzássemos o rio Anhambi e seguíssemos por certa trilha dentro do mato sempre a acompanhar o curso do ribeirão, que julgamos ser este que aí corre, iríamos dar na moradia de quem buscamos.
— Pois contou o bom Pereirinha a mais a pura verdade.
Não estava certo se bem compreendia eu o que dizia o gajo.
— Mas não vive então vosmecê nessa choça?
— Alevantei essa vivenda e nela habito há mais de trinta anos. Pelo menos há uns dois ou três posso garantir e afirmar que por aqui vivo e disso tenho quase certeza.
Olhei o morto-vivo. Examinava ele do alto ao baixo o foão com seus olhos parados no rosto.
Convidou a mim e a meu comparsa para ter com ele em sua cafua.
Mas antes, já perto da porta de casa, tirou do chão uma sineta e, aos badalos e bimbalhos, pôs-se a tocar olhando para a árvore onde há pouco estava empoleirado.
Em grande pressa e estardalhaço, logo desceu ao chão a bugiada inteira e mui atentada postou-se em fronte ao velho.
Deu-se então algo desassemelhado e jamais visto.
Pôs-se o dito velho a fazer trejeitos, meneios e rodopios sendo logo imitado pelos macacos.
Eram talvez uns vinte e poucos bugios a dar cambalhotas e fazer micagens, caretas e momices, sempre a arremedar o dito gajo, como se estivessem metidos num bailado insano e tomados de pura desmiolice.
Ancorados ao chão aguardamos, o falecido Gil Vianna e eu, aquela espécie de folguedo.
Ao depois de um tempo, cessou a folia.
Caminhou então o gajo até a tenda de bambus ao lado da choça e tornou de lá com uma graúda canastra pejada de mandiocas, abóboras, bananas, milhos, batatas, mamão e outras iguarias.
Fartaram-se de comer os bugios e, ao depois de saciados e de barriga cheia, partiu cada um para o seu canto embrenhando-se na mataria.
— Há bens que vêm para males — disse o velho maroto, convidando-nos a entrar em sua vivenda.
Passamos com o dito Campos o restante do dia sentados no chão em conversas e taramelas bastante desusadas e assaz imprevistas.
De primeiro, quando a ele preguntamos se podia indicar o paradeiro do tal Carvalho, respondeu que quando andava fora o dito Carvalho, só tornava nem Deus nem Barzabu sabiam quando.
— Mas isso são miudezas que de nada importam — completou o gajo. — Quem volta, amiúde retorna. Quem some, desaparece. Podem falar comigo mesmo, pois o que porventura responderia o Carvalho responderá este Campos que ainda agora por acaso aqui está.
Grande estranhamento a nós despertava aquele inesperado velhote.
Tomou a palavra Gil Vianna. Preocupei-me ao perceber que passou o morto-vivo a falar com a voz demandona, brusca e desprecavida.
Mandou que prestasse o velho muita atenção.
Avisou que estava ele a falar com um fidalgo, com um homem bom da terra, com o filho de um fazendeiro pertencente à família Vianna.
Disse que andávamos em busca do dito Carvalho, um reinol que sabíamos ser homem honesto e de bons costumes. Tínhamos informes de que talvez detivesse o dito Carvalho notícias a respeito de alguém a quem precisávamos encontrar e falar.
— Conhece ou não conhece vosmecê o cristão de nome Carvalho? — preguntou o defunto com sua voz oca e firme.
— Tudo o que conhece e sabe o Carvalho sei e conheço eu Campos — respondeu o velho. — Tudo que não sei e desconheço eu Campos, não sabe nem sonha conhecer o Carvalho. A quem afinal procuram vosmecês?
Lembro-me de Gil Vianna abaixar a cabeça.
“O que era aquilo?”, preguntei-me em pensamento. “Quem era pois aquele traste que não falava cousa com cousa?”
Recordo de que, quando adentramos sua vivenda, logo me apercebi que havia ali apenas uma rede armada, atada num canto entre as paredes. Do lado oposto, ficava o fogareiro aceso com dois panelões que borbulhavam. Mui pouca alfaia havia na casa. Um baú encostado num canto, algumas caixas e canastras espalhadas, um barril de pau, a mesa com uma botija de água, dois candeeiros e só.
Por certeza e por tudo o que se via, apenas uma pessoa habitava aquela choça.
Inseguro diante do disparatado velho, julguei por bem mudar os rumos da conversa.
— Habitam vosmecê e o dito Carvalho essa mesma cafua? Olhou-me o velho Campos.
— Em verdade, sim e não.
E completou em tom de confissão e desabafo:
— Nem sempre me acerto com ele. Amiúde temos graúdas desavenças e discordâncias. Por vezes, dele sinto raiva, embora também por outras, grande contentamento. Volta e meia metemo-nos em pendenças que usam termar em grossas pancadarias e escaramuças.
Sorriu o gajo.
— Há momentos — disse ele — em que penso em matar aquele embusteiro filho da mãe, tão tamanho torna-se por ele meu desgosto e minha desaprovação. Mas isso passa. Nos damos mui bem eu e ele e vez por outra até deveras nos amamos.
— São então vosmecês irmãos ou aparentados? — preguntou Gil Vianna.
— Diga-me quem não és, e a ti direi com quem andas — respondeu o velho.
Lembro até hoje do meu sentimento de pasmo e estorvo.
Eis a verdadeira verdade.
Não passava aquele velho de um estroina atrofiado do pensamento. Nem Gil Vianna nem eu nem ninguém que habitasse este mundo presente conseguiria acompanhar suas palavras e atinar com o que deveras dizia e falava o dito amalucado.
Estávamos os dois, o defunto e eu, afadigados da longa caminhada. Ao menos eu estava.
Pôs-se a tarde a cair e tal e qual uma vagarosa tinta a escorrer pôs-se a encobrir e a tragar o azul do céu.
Preguntei se porventura poderíamos pernoitar em sua companhia.
Respondeu-me que antes mal acompanhado do que só, embora nada fosse mais deleitoso do que estar sem companhia.
Contou que tinha sempre já quase aviada uma saborosa carne para com seus poucos e raros hóspedes repartir e comer durante a ceia.
E a dizer que são os moinhos movidos por águas passadas, alevantou-se e foi até o fogão preparar o de comer.
Andava eu desistido de buscar algum entendimento e compreender qualquer cousa dita por tão tamanho desatinado.
Impacientado, decidiu sair o finado Gil Vianna, enquanto não caía a noite, para andar um pouco e conhecer os derredores da vivenda e a roçaria de mantimentos do estranho Campos.
Fui, enquanto isso, até o rio para lavar os pés e caçar os muitos carrapatos que em mim vieram habitar nos muitos dias de caminhada.
À noite, serviu-nos o velho um mui apetitoso, bem temperado e grande macaco assado.
Contou ele que, além de mandiocas, milhos, abóboras e canas, cultivava há anos em suas terras um rebanho de macacos para o fornecimento da carne de todo o dia.
— É deveras menos trabalhoso do que ter vacas e bois, pois para isso seria preciso alevantar cercas e andar pelos dias e suas noites preocupado com onças, serpentes e cachorros do mato. E bem me- nos embaraçado outrossim — completou — do que sair pelos matos em busca de caça, arriscado a voltar de mãos vazias ou, pior, de ser atacado por alguma fera comedora de gente.
Explicou o velhaco que há anos mantinha ele uma roçaria de bugios, não apenas para sua própria mantença como também para a venda de carne aos viajantes que por ali costumavam passar. Contou que sempre que havia necessidade, na surdina, laçava, prendia, matava e moqueava um macaco do rebanho.
— É deveras fácil e proveitoso — disse ainda — por terem em mim os bugios confiança, por de mim receberem comida e serem bons e fiéis amigos que me fazem companhia nos dias de solidão.
E completou:
— Estão meus bugios sempre prestes e livres para ser mortos.
Mui admirados restamos eu e – lembro bem agora – mormente Gil Vianna, que sorriu alumbrado ao saber da inesperada lavoura de carne e ele, que há tempos quase não mais comia nem sentia fome, quis experimentar um pedacito do bugio.
Mencionou então o morto-vivo ser seu pai o capitão e fazendeiro José Silveira Nunes da vila de São Paulo de Piratininga.
Nunca dele ouvira falar o velho Campos.
— Por certeza seu irmão se lembrará do senhor meu pai — afirmou Gil Vianna.
Apoquentou-se o velho:
— Pois já não disse eu a vosmecês que tudo o que sabe o Carvalho sei eu Campos e tudo o que não sei eu Campos de nada sabe o Carvalho? — E preguntou: — Bem sei eu que quem precisa necessita muito e que quem nunca encontra anda sempre a buscar, mas quem disse que é o Carvalho meu irmão?
De novo quis saber ele a quem buscávamos nós.
Respondi a ele então que andávamos em busca de um padre, mas tão tamanho, rude e abruscalhado foi o efeito contrário e o feroz desagrado diante de minhas palavras que nem tive tempo de completar minha fala.
— Padre? — berrou o velho erguendo-se furioso do chão. E, aos gritos, a andar às tontas pela cafua, desalastrou ele uma cantilena de desaforos, injúrias e blasfêmias:
— Proíbo que dentro da minha casa venham me falar de padres, papas, clérigos, vigários, frades, monges e toda essa infernal casta de frascários e sanguessugas do povo!
Declarou que não reconhecia ele a autoridade da Igreja. Disse que missas eram inúteis e para os mortos mais ainda: “Morto o homem, morre a alma e nem as mais belas e perfumosas flores impedirão a podridão do defunto!”.
Arregalou mais ainda os olhos o alma penada Gil Vianna, alevantou-se e por um instante me pareceu prestes a socar o velho.
Este entretanto de nada se apercebeu e continuou sua enfiada de blasfêmias. Disse que ir se confessar com padres era o mesmo que falar com pedras e árvores. Que não passava o batismo de uma ardilosa artimanha para angariar fundos e granjearias. Que se porventura um dia, depois do Juízo Final, todos os homens ressuscitassem, ia ficar o céu uma barafunda de gentes, o Jardim do Éden, as vilas, estradas e terrenos celestes atopetados e recobertos de tantos e tantos defuntos que para nada haveria lugar e ninguém mais lograria andar, nem mesmo respirar, tão dilatado seria o congestionamento. Declarou ainda o velhote que era falar latim um embuste e uma tre-doíce dos sacerdotes para embelecar e enganar os fiéis. E, mais, que o papa, os cardeais, os bispos e os padres ganhavam a vida graças à ruína do povo.
Mui assustados com aquela pecaminosa arenga ficamos eu e maismente o defunto Gil Vianna.
Entendi logo o porquê.
Por certeza, quando no céu fosse julgado, pesaria contra o alma penada ter convivido, andado e conversado com companhia tão pérfida e blasfemosa. Bem que tentou o finado fidalgo interromper as falas do velho a pedir que cessasse ele com tantas ofensas e tão impensadas e temerárias palavras.
Pouco se importou o velho que preguntou:
— Por que não doa o papa seus oiros, bens, fazendas e granjearias aos pobres como eu? — E prosseguiu com suas mui mal calibradas falas:
— Rezo aos céus para que vivam os padres para apenas um fim: servir aos homens. Pois não falam tanto em amar o próximo como a si mesmo e em bondades, gentilezas, compaixões e issos e aquilos? Por que então não se tornam eles próprios escravos dos homens que duramente trabalham e lutam pela vida? Eu mesmo ando em grande penúria, só e desajudado nesses confins agrestes das terras do Brasil. Se querem ser bons os sacerdotes e fazer o bem ao mundo por que não vêm trabalhar sem soldo nem paga nas minhas lavouras? Melhor ainda. Por que diacho, no lugar de padres, não manda até cá a Igreja formosas e ditosas freirinhas? Seria para mim motivo de gáudio e grande contentamento!
E concluiu:
— Creio em Deus, mas não sinto que creia Ele em mim.
Foi quando explodiu o defunto Gil Vianna:
— Mas o que vosmecê diz são palavras falsas e mal limadas. São sacrilégios endemoniados, sujos pensamentos assoprados pelo diabo, apinhados de injúrias e ofensas contra Deus Nosso Senhor e contra as leis da Santa Madre Igreja! — exclamou em tom agressivo o morto-vivo de pé com o azorrague na mão. — Cale sua boca e pare com isso! Essas pérfidas blasfêmias vão custar caro e levar vosmecê aos corredores escuros e nefandos do inferno! Não se apercebe vos- mecê que vão suas afrontas de contrário a tudo o que Jesus Cristo nos ensinou?
— Quem é ele? — preguntou o velho. — Ele quem? — Quis saber Gil Vianna. — Esse Jesus de não-sei-o-que-lá.
[24]
– Pelos tutanos de Santo Antão! — protestei atordoado. — Estamos a falar de Jesus! Jesus Cristo de Nazaré! Do filho santo e sagrado de Deus Nosso Senhor! Aquele que morreu por nós, foi crucificado e ao depois ressuscitou!
— Desconheço quem seja, mas se deveras for ele filho de Deus Nosso Senhor, como afirma vosmecê, então tem o mesmo sangue que nós, é por força nosso irmão, é homem como os demais homens, é nosso parente, assim como eu mesmo sou parente do Rei de Portugal.
— Deus me perdoe! — gritou Gil Vianna. — Era o que faltava! Vosmecê parente do Rei!
— Pois não? — retrucou o velho com ares de surpresas. — Somos o Rei e eu parentes por parte de Adão!
Tomou-se de fúrias o finado fidalgo:
— Cale essa boca suja, cão perro lazarento dos diabos!
— Cadela perra lazarenta das diabas é sua mãe!
Foi quando saltou o morto-vivo por cima do velho com o azorrague na mão, derrubando-o no chão às socadas e chicotadas.
Tentei puxar e empurrar meu companheiro de viagem argumentando que era o dito Campos um basbaque estorvado dos miolos, um lorpa desarranjado das ideias, e que matá-lo só iria tornar piores as cousas perante Deus Nosso Senhor que das nuvens tudo vigia.
Aos poucos, embora aborrecidos um com o outro, acalmaram-se os dois.
Bem comido na ceia o saboroso macaco, declarou o velho:
— Quem de novo não morre, de velho não escapa.
Minguadas tais conversações tão desprovidas de razão, dormimos aquela noite no chão de terra dura do casebre.
Nas primeiras horas do dia, almoçamos uma boa farinha de peixe com mandioca, acompanhados de biscoitos, marmelada e algumas goiabas.
Enquanto comíamos, por acaso comentei com meu desfalecido companheiro de viagem algo como: “Deixe estar. Após o almoço, de novo partiremos pelos matos em busca de alguém que neste mundo tenha notícias do padre Tomé Alonso”.
Estremeceu o velho tomado de sobressaltos:
— Mas... conhecem vosmecês Tomé Alonso?
Desaferrolhou então o dito Campos uma enxurrada de elogios e palavras de louvação e bem-querença.
Declarou ser o padre Alonso um santo homem, um cristão embebido de bondades, um verdadeiro e fiel seguidor das leis e dos ensinamentos de Jesus Cristo, o filho de Deus que na Terra desceu para nos salvar. Era Tomé Alonso, segundo o velho, um homem pio de mui honestos e castos costumes, que sempre desprezara a si mesmo e as vaidades do mundo em prol dos ditames e das leis de Deus Nosso Senhor.
Restei maravilhado diante de tão tremendo basbaque.
(...)
🖼️ A imagem é a capa de uma das edições do livro.
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