Sobre mendigos
Sobre minha antiga ligação com mendigos, trago, primeiro, o posfácio do livro Marinheiro Rasgado, Formato, 2010. Depois, três textos esfarrapados.
“Fiz meus estudos no Colégio Visconde de Porto Seguro. Antigamente, o colégio ficava na praça Roosevelt, no centro de São Paulo. A praça, um espaço amplo, mais ou menos abandonado, com arbustos esparsos e chão em parte asfaltado e em parte de terra batida, era usada como estacionamento e, nas quartas e sábados, acho, virava uma feira livre, muito boa e movimentada. Apesar de ser uma área descuidada e indefinida, era muito melhor do que a praça de hoje, a meu ver, um monstrengo de concreto frio, desumano, desajeitado e artificial. Na praça antiga, isso na década de 60, morava um mendigo barbudo, simpático, magro e esfarrapado. Ficava por lá, andando para cima e para baixo, seguido por um séquito de vira-latas. Vi esse homem todo santo dia durante anos, com sua barba grisalha, seus olhos claros e uma espécie de meia enterrada na cabeça. Era uma figura estranha e bonita. Costumava sentar-se numa mureta, perto da rua Gravataí, cruzava as pernas com elegância e, puxando um papel enorme do bolso do paletó, punha-se a escrever com um toco de lápis. Às vezes parava e, sério, mostrava o texto para os cachorros. Lembro que os animais se levantavam e parece que liam aqueles escritos com um certo interesse. Quando ficava cansado, o mendigo dobrava e guardava o papel no bolso e partia vagaroso pela praça, seguido por seus companheiros caninos, examinando as nuvens concentrado e pensativo, com os braços cruzados nas costas. Mais tarde, de 1971 a 1975, cursei a faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado. Pois não é que também lá, dentro do prédio da escola, morava um mendigo barbudo, simpático, magro e esfarrapado? Tenho certeza de que essas duas figuras humanas, frágeis e fortes ao mesmo tempo, deram o pontapé inicial para que eu pudesse escrever esse livro.” [assim como os poemas]
Os dois poemas seguintes são do livro Dezenove poemas desengonçados, Ática, 1997 (Prêmio Jabuti Melhor Livro Infantil de 1999).
Se um dia eu for mendigo
se um dia eu for mendigo
escuta bem o que eu digo
vou andar esfarrapado
vou viver espandongado
vou fazer esculhambado
meu ninho naquela praça
depois, pra fazer pirraça
vou pedir uma esmolinha
vou juntar um dinheirinho
pra chegar na padaria
primeiro, dizer boa noite
segundo, dizer bom dia
terceiro, gritar risonho:
- Por favor me traga um sonho,
mas um sonho caprichado
mas um sonho saboroso
quero um sonho açucarado
recheado de esperança
para espantar bem depressa
a fome da minha pança!
Oração do mendigo
eu quero poder plantar
no jardim que nunca tive
não um pé de laranjeira
não um pé de mexerica
não um pé de limoeiro
eu quero e preciso urgente
plantar depressa ligeiro
um pouquinho de dinheiro
🎶 Esses dois textos são letras de músicas. Elas podem ser escutadas no meu site www.ricardoazevedo.com.br em “Canções” https://ricardoazevedo.com.br/wp/wp/cancoes/
Agora trago o texto do primeiro capítulo do já citado livro Marinheiro Rasgado:
“O homem apareceu um dia na praça, mas foi como se já fizesse parte da paisagem desde sempre.
Estava lá quando amanheceu, compenetrado e pensativo, andando devagar com as mãos cruzadas nas costas. Trouxe um saco de pano grosso cheio até a boca, duas latas velhas de biscoito e uma caixa de sapatos amarrada com um laço de fita cor de rosa. Ajeitou tudo, com cuidado, num canto debaixo de um banco de cimento e pronto. De mudança feita, partiu pela praça mergulhando os olhos brilhantes em todos os lugares.
Era uma figura, aliás, até um pouco bonita.
Magro, nem moço, nem velho, tinha as barbas grisalhas e longas contrastando com a pele queimada pelo sol. Usava um paletó cinzento e largo feito, sem dúvida, para um corpo maior e bem mais gordo. Vestia uma calça de brim remendada e desbotada, com uma perna mais curta que a outra. Num pé, calçava um tênis vermelho puído, amarrado com um fio elétrico. No outro, sandália de dedo. Enterrada na cabeça, uma espécie de meia de jogador de futebol servia como chapéu e ainda ajudava a esconder a vasta cabeleira.
Enquanto as pessoas corriam pela praça com pastas de couro debaixo do braço, carregando pacotes e encomendas, preocupadas com compromissos importantes e inadiáveis, horas marcadas e mil missões para cumprir, o homem assobiava debaixo do céu imitando o sopro gostoso do vento. As pessoas aflitas atravessavam as ruas sem esperar o sinal fechar.
De cócoras, o mendigo examinava atentamente coisas inúteis. Por exemplo, uma formiga carregando uma folha no chão. Por exemplo, a diferença entre o asfalto da rua e o cimento da calçada. Por exemplo, uma flor brotando entre os paralelepípedos. Costumava também deitar-se na beira da calçada para espiar a escuridão insondável e misteriosa dos bueiros.
Quando encontrava um pedaço de pizza esquecido na calçada, o sujeito pegava com cuidado, como se fosse uma joia preciosa, cheirava com os olhos fechados e comia mastigando devagar.
Automóveis, ônibus, caminhões, viaturas da polícia, ambulâncias e motocicletas circulavam em torno da praça brecando e buzinando, mas o homem, vagaroso, conversava sozinho, pensava, sorria e balançava a cabeça trocando ideias consigo mesmo.
E lá ia ele com aquela meia enterrada na cabeça arrastando uma lata de cerveja vazia amarrada na borda do paletó, sempre seguido por um animal de pelo amarelo arrepiado que talvez fosse um cachorro.
Fora isso, o maltrapilho era especialista em catar as coisas pelo caminho: tampinhas de garrafa, pedaços de pão, latas vazias, arames retorcidos, restos de sanduíche, rolhas, papéis, sacos de batatinhas fritas com restinho no fundo, plásticos, pregos, frutas e verduras caídas da barraca de feira, parafusos, fios elétricos, comidas variadas jogadas fora, folhas e pedras entre outras quinquilharias.
Nem bem chegou, e logo passou a usar o chafariz do centro da praça como banheira para tomar banho. Fazia isso, de vez em quando, mais ou menos três vezes por semana. Vagaroso, tirava a meia da cabeça, afundava o corpo no laguinho e ficava olhando as nuvens do céu. De repente, sumia debaixo d’água para conversar com os peixes. Mais tarde, penteava cabeleira e barba olhando num espelhinho quebrado que trazia sempre no bolso de dentro do paletó.
Às vezes, após o banho, catava um toco de cigarro do chão, subia num tronco de árvore, cruzava as pernas e ficava pensando na vida ou escrevendo num caderninho amarrotado. Escrevia e espiava a noite chegar para apagar o dia e tomar conta de tudo.”
🖼️ A imagem é do livro Marinheiro Rasgado, Formato, 2010.
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