Sistema cultural dominante, didatismo e literatura
Minha sensação após 27 anos – hoje 44 – de visitas a escolas e conversas com estudantes que leram meus livros, assim como com seus professores, é a de que a escola, tirando poucas exceções, não sabe bem o que fazer com a literatura.
Para levantar e discutir o problema, venho tentando apontar, em artigos e palestras, certas diferenças e contradições existentes entre o discurso técnico-utilitário, característico dos livros didáticos, e o discurso ficcional e poético, característico dos livros de literatura.
Tenho feito isso por sentir que o atual modelo escolar, muitas vezes, confunde as coisas, e trata livros de literatura como se fossem didáticos.
Na verdade, eles são muito diferentes entre si e implicam maneiras divergentes de enxergar a vida e o mundo, como pretendo demonstrar.
Vivemos na chamada “cultura moderna”, o sistema cultural dominante na sociedade ocidental. Nas palavras do antropólogo Roberto Da Matta, sistema impregnado por uma “ideologia econômica, fundada na noção do indivíduo e na ideia de mercado, local onde tudo pode ser trocado, comprado e vendido” (Carnavais, malandros e heróis – Para uma sociologia do dilema brasileiro. Zahar, 1979.). Além disso, um modelo construído a partir de “sistemas individualistas (…) marcados pelo progresso e pelo consumo e permeados pela técnica” [pela ciência, eu acrescentaria] “e pela ‘razão crítica’” (op.cit).
Naturalmente, o discurso técnico-utilitário, largamente difundido pela escola, está formatado tendo em vista esse “sistema cultural dominante” e tem sido um importante meio de difusão dos paradigmas da “cultura moderna”. É preciso ressaltar que tudo isso extrapola a educação propriamente dita, afinal os paradigmas referidos fazem parte da cultura contemporânea, estão naturalizados, influenciam a visão de mundo de todos nós e têm sido divulgados cotidianamente não só por livros didáticos mas, também, por manuais técnicos de todo tipo, jornais e revistas, publicidade, internet etc. Eis alguns desses paradigmas:
1) a valorização da ação individual, o que implica o individualismo.
De acordo com os estudiosos do assunto, o individualismo corresponde à ideia de que o homem seja “livre” (daí o “livre arbítrio”, a “livre iniciativa”, o “livre comércio” etc.); “igual” (supõe a “igualdade de oportunidades” ou a “igualdade perante a lei”) e “autônomo” (valoriza a “auto governabilidade” ou o agir segundo leis e interesses próprios). Segundo esse modelo, em tese, cada homem constrói com liberdade e autonomia, baseado em seus próprios interesses, seu destino, suas ações, seu conhecimento, suas crenças, seu mundo interior, suas relações com o Outro, suas utopias etc.;
2) a valorização do pensamento analítico, reflexivo e crítico.
Trata-se de um modo de pensamento ligado à postura técnica e científica que, diante de qualquer fenômeno (um corpo físico, uma sociedade, um texto, uma paisagem, um sonho, uma flor, uma emoção, o Outro etc.), pretende, através do distanciamento e da impessoalidade, a) buscar a visão geral para situar o fenômeno; b) compreender sua estrutura, identificar e separar as partes que compõem o todo ( o que supõe que tudo seja passível de ser decomposto em partes); c) examinar criticamente, ou seja, “detectar inconsistências”; d) definir, classificar e catalogar; e) criar hipóteses sobre seu funcionamento para, finalmente, f) determinar leis gerais ou universais ou construir explicações, definições e interpretações a respeito do assunto estudado;
3) a valorização do pensamento descontextualizado que busca estabelecer conceitos e princípios gerais e universais.
Por descontextualização, refiro-me ao pressuposto ou à crença de que todo fenômeno implica necessariamente a existência de um conjunto de leis gerais e abstratas que transcendem o fenômeno em si. J. Peter Denny (“O pensamento racional na cultura oral e a descontextualização da cultura escrita”, em OLSON, David R. e TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. Ática, 1995) dá como exemplo o ensino às crianças de formas abstratas como quadrado, círculo e triângulo, modelos sintéticos inexistentes na natureza apresentados em diagramas desligados de qualquer objeto real. Nesse caso, o círculo seria a “descontextualização” de uma lua cheia ou de uma bola de futebol.
Noutro patamar, a descontextualização pode ser descrita como a criação de noções e princípios abstratos, a chamada nominalização, por meio da qual uma ação como “aplaudir” passa a ser “aplauso” ou “inferir” a ser “inferência”. São exemplos de descontextualização conceitos abstratos tais como “ser humano”, “modernidade”, “cultura popular”, “liberdade”, “igualdade”, “indivíduo” ou “autonomia”.
De acordo com o filósofo John Searle, a explicação científica sobre um fenômeno “consiste em mostrar como a sua ocorrência resulta de certas leis científicas e essas leis são generalizações universais acerca do modo como as coisas acontecem” (em Mente, cérebro e ciência. Lisboa, Edições 70, 1984).
Descontextualizar implica, portanto, necessariamente abstrair e generalizar.
4) a valorização da objetividade, ou seja, a leitura dos fenômenos pretensamente feita com completa isenção, neutralidade, imparcialidade e impessoalidade. Louis Dumont define objetividade como “ausência de sujeito” (em O individualismo - Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rocco, 2000).
Com a “objetividade”, em resumo, somos condicionados a acreditar na capacidade humana de enxergar os assuntos e os fenômenos com distanciamento e impessoalidade, ou seja, livre da influência de emoções, hábitos, cultura e marcas pessoais. Em outras palavras, aprendemos a agir e pensar supostamente isentos de nossa subjetividade.
O discurso crítico e objetivo é muito conhecido e fácil de ser identificado. A frase “A água ferve a 100 graus” por sua grande universalidade, funcionalidade e impessoalidade pode ser considerada paradigmática do modelo acima discutido. Note-se que neste tipo de discurso não existe o sujeito que fala. O mesmo se dá no seguinte texto: “O Brasil é banhado pelo oceano Atlântico, desde o cabo Orange até o arroio Chuí, numa extensão de 7.408 km, que aumenta para 9.198 km se considerarmos as saliências e reentrâncias do litoral, ao longo do qual se alternam praias, falésias, dunas, mangues, recifes, baías, restingas e outras formações menores”. (C.f. ANTUNES, Celso. Geografia do Brasil 2º Grau. São Paulo, Scipione, 1990). Note-se a exatidão milimétrica: “numa extensão de 7.408 km, que aumenta para 9.198 km se considerarmos as saliências e reentrâncias do litoral...”.
Max Planck, fundador da física quântica, acreditava que “real (...) é aquilo que pode ser medido” (C.f. HEIDEGGER, Martin. Língua de tradição e língua técnica. Lisboa, Passagens, 1995).
5) o utilitarismo, ou seja, a tendência a valorizar-se os aspectos úteis e funcionais de todo e qualquer fenômeno.
Creio que podemos encontrar aqui uma das raízes da noção de tecnocracia, a valorização e o poder da técnica acima de tudo (a “supremacia dos técnicos”), marca indiscutível do “sistema cultural dominante” e da mentalidade valorizada pelo status quo.
6) o evolucionismo, ou seja, a crença no princípio de que os fenômenos culturais estejam imersos num constante, natural e permanente processo de desenvolvimento, progresso e aprimoramento. Por esse princípio, somos levados a inferir que a própria realidade seja condicionada a um fluxo perene de desenvolvimento e evolução que rumaria linearmente do “simples” ao “complexo” ou do “selvagem” ao “civilizado”.
Neste sentido, “evolução” e “modernização” podem ser consideradas noções sinônimas.
É preciso problematizar e discutir esses paradigmas. Não se trata de negá-los – sem eles talvez não existissem nem ciência nem técnica – mas, sim, de relativizá-los.
Em entrevistas feitas por Luria e Vygostky com analfabetos da Ásia Central, isso nos anos de 1930, foi constatada a aparente dificuldade dos analfabetos de lidar com o raciocínio silogístico.
Sabemos que o silogismo é um método dedutivo segundo o qual, postas duas proposições, chamadas “premissas”, delas se tira uma terceira, considerada a “conclusão”. Tal procedimento consiste em pensar abstratamente por meio da descontextualização, até porque o silogismo é autossuficiente: sua conclusão deriva exclusivamente de suas premissas.
No caso dos camponeses, ficou clara a relutância em responder silogismos simples como: “Todas as mulheres que moram em Monróvia são casadas; Kemu não é casada; Kemu mora em Monróvia?”.
Em geral, as respostas dos camponeses analfabetos eram “Não sei, não conheço essa tal Kemu” ou “Nunca estive em Monróvia” ou, depois de muita insistência “Se você diz que a Kemu não mora em Monróvia, então ela não mora”.
Conclusão da pesquisa: analfabetos têm o pensamento abstrato pouco desenvolvido e são incapazes de fazer silogismos.
Décadas depois, o mesmo teste foi aplicado, mas a partir de ideias fantásticas ou situações improváveis, algo como “Todas as pedras na Lua são azuis. Você foi à Lua e viu uma pedra. Essa pedra era azul? ”
Surpreendentemente, o resultado entre analfabetos e letrados quase se nivelou.
O psicólogo e educador canadense David Olson, de onde tirei as informações acima, explica o porquê (em O mundo no papel – As implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. Editora Ática, 1997). Segundo ele, analfabetos estão habituados ao pensamento preponderantemente pragmático, sempre construído a partir de situações e casos concretos oriundos da experiência prática. Por essa razão, a premissa “todas as mulheres que moram em Monróvia são casadas” foi considerada por eles, embora de forma não explícita, inaceitável por uma mera questão de lógica (!). Ela contraria a experiência humana prática e situada, contextualizada, sempre menos generalizável. Salvo em situações absolutamente raras e excepcionais, seria impossível que “todas” as mulheres de qualquer lugar fossem casadas. E as muito moças? E as separadas? E as viúvas? E as doentes? E as que preferiram outras opções?
Por essa razão, entre os analfabetos consultados, o jogo silogístico simplesmente não funcionou.
Pessoas alfabetizadas, por outro lado, note-se a conclusão dos pesquisadores, têm o costume e são treinadas pela escola para raciocinar a partir de axiomas e premissas dadas, “sem discuti-las”. Eis porque, no caso do silogismo das mulheres de Monróvia, os entrevistados conseguiram pensar nos termos pedidos pela pesquisa.
Em outras palavras, raciocinaram mecanicamente a partir de premissas teóricas, sem se preocupar se as mesmas eram ou não factíveis na vida prática. Souberam, portanto, pensar de forma descontextualizada mas, ao contrário dos analfabetos, ignoraram sua própria capacidade de também pensar de forma contextualizada.
Não por acaso, os gregos já brincavam com o silogismo. Diziam algo como: “aquilo que não perdeste, aquilo tens. Não perdestes os cornos, logo, cornos tens. ” (em GUERREIRO, Mario A.L. O dizível e o indizível. Filosofia da linguagem. Campinas, Papirus Editora, 1989).
Embora não se possa tomar as conclusões da pesquisa citada de forma absoluta, afinal esses mesmos analfabetos podem ter crenças e superstições também baseadas em pressupostos bastante abstratos, a questão do pensamento criado principalmente a partir de premissas teóricas merece ser levada em consideração. Estaria a escola formando pessoas menos capazes de lidar com a realidade concreta e situada do que com teorias e abstrações?
Uma coisa é certa: sabemos que, não poucas vezes, a teoria na prática é outra.
Trouxe esse exemplo para ressaltar que é preciso colocar em discussão ou relativizar certos procedimentos mentais largamente difundidos e naturalizados pelas escolas, por livros técnicos, pela mídia e pelo próprio ambiente cultural que nos rodeia.
Abro parênteses: numa sociedade como a nossa, com tantos analfabetos ou semianalfabetos, o choque entre diferentes tipos de abordagens que, é bom dizer, implica diferentes padrões culturais construídos socialmente, mereceria ser melhor estudado e compreendido.
O que ocorre com a cabeça de uma criança, filha de analfabetos, acostumada a valorizar a experiência prática e contextualizada das coisas e o conhecimento transmitido oralmente por pessoas mais velhas, quando entra em contato com o mundo escolar construído a partir de conceitos e informações abstratas transmitidos por livros?
Por outro lado, num ambiente “moderno” que tende a desconhecer e desprezar as culturas “tradicionais”, como se sente essa criança, oriunda de uma rica e heterodoxa cultura popular, ao ser levada a acreditar que seus pais não sabem “nada”, ou seja, não sabem escrever e ler, não conhecem gramática, matemática, ciências e todo um conjunto de informações e pressupostos abstratos marcados pela cultura escrita?
Dito isso, passo a discutir as premissas que relacionei ao discurso técnico-didático e, de forma mais ampla, à visão de mundo característica do sistema cultural dominante.
1) sobre a valorização da ação individual e do individualismo.
Ora, sem dúvida é uma beleza ser livre, igual e autônomo, mas... o que é liberdade? O que é igualdade? O que é autonomia?
Até que ponto sou livre para colocar meus interesses acima dos interesses da sociedade onde vivo?
Até que ponto sou livre para destruir a natureza ou poluir o meio ambiente tendo em vista o crescimento de minha empresa ou a geração de lucros em benefício próprio?
(...)
Caso não seja tão livre assim, repito, o que é liberdade?
Como, por outro lado, falar em algo abstrato como “igualdade de condições” ou “livre concorrência” num país onde cerca de 80% da população é semianalfabeta ou mesmo analfabeta?
Enfim, o que é “autonomia”?
Sou autônomo com relação à sociedade onde vivo ou tenho obrigações e responsabilidades para com ela e para com as pessoas que a formam comigo?
Peço ao leitor que tente pensar em um único exemplo prático de algum fenômeno humano ou social que possa de fato ser considerado “autônomo”.
Mesmo o câncer, em tese, um desenvolvimento livre e autônomo, depende da base de um organismo vivo para prosperar.
(...)
Tudo isso para dizer que “liberdade”, “igualdade” e “autonomia”, embora sejam metas que, em princípio, devamos sempre buscar, parecem ser premissas bastante teóricas e abstratas que não devem nem podem ser tratadas como fatos concretos, consensuais, suficientes e absolutos.
É válido pretender ser um indivíduo moderno, livre e “descolado”, mas é urgente discutir melhor os paradigmas e os limites da “modernidade” e do “individualismo”. Este, se levado às últimas consequências, tende, como sabemos, a resultar na guerra de todos contra todos.
Na verdade, a crença individualista costuma ser exclusivista por definição. Segundo ela, o que importa é o “meu” interesse, o “meu” jeito de ser, o “meu” gosto, a “minha” classe social, a “minha” cultura, a “minha” linguagem, a “minha” crença etc. O resto, o “diferente de mim”, deve ser excluído, para não dizer destruído. Dou um trágico exemplo: alguns jovens da elite, estudantes de escolas caras, transformados em pessoas individualistas, alienadas e imbecilizadas, que costumam sair por aí tirando rachas de automóveis em pleno espaço público, fazendo quebra-quebra, matando ou agredindo índios, mendigos e prostitutas, ou seja, pessoas pobres pertencentes a “outro” universo.
Nesse sentido, creio, “individualismo”, “exclusão social” e “intolerância” podem ser considerados sinônimos.
Acrescente-se que, infelizmente, temos sido bombardeados e condicionados diariamente por duas relevantes fontes da “ficção individualista”: anúncios de publicidade, criados em geral a partir da inveja com relação aos que têm “algo a mais” ou “sabem o que querem” (leia-se, sabem optar pelo produto anunciado), e parte importante do cinema de entretenimento, notadamente o norte-americano, com seus super-heróis e protagonistas que se arvoram no direito de fazer justiça com as próprias mãos.
No âmbito escolar, o individualismo pode, a meu ver, ser associado às visões que enxergam a criança como um tesouro a ser burilado. Por esse viés, o ensino deve ser construído “de dentro para fora”, ou seja, a partir do interior de cada criança. Nesses termos, o cultivo da liberdade individual e da subjetividade tende a ser muito valorizado. Em casos extremos, como a experiência de Summerhill, são os próprios alunos que determinam regras e tarefas escolares.
É indiscutível que as crianças, com sua beleza, alegria e espontaneidade, costumem ser “tesouros”, mas é preciso cuidar para que essas abordagens não façam com que elas acreditem ser o centro do mundo.
2) sobre o pensamento analítico, reflexivo e crítico.
Para muitos estudiosos, a grande valorização e legitimidade desse tipo de pensamento têm se dado graças aos avanços da técnica e da ciência. De fato, ambas têm obtido extraordinários resultados mas, note-se, principalmente diante dos fenômenos biológicos, químicos e físicos, que pressupõem desenvolvimentos e processos mecânicos, substâncias e materiais. Ou, em decorrência, no caso de produtos, objetos, artefatos, medicamentos, aparelhos, equipamentos, motores, máquinas e outras peças tecnológicas.
Quando se trata de compreender homens de carne e osso situados, sociedades e relações humanas, culturas, artes, subjetividades, padrões morais e éticos e mitos culturais, a coisa se complica um pouco.
Como dizia P. J. Stahl: “a ciência explica o relógio, mas ainda não conseguiu explicar o relojoeiro.” (no prefácio de PERRAULT, Charles. Contos. Belo Horizonte, Itatiaia, 1985).
De que adianta, por exemplo, numa guerra, saber que nela existem moléculas e átomos?
De que adianta, para quem está apaixonado, saber que seu objeto de paixão é composto de células e neurônios? Ou que possui ossos, veias, nervos, músculos e cartilagens?
Digo tudo isso porque a literatura de ficção e a poesia costumam tratar de assuntos relativos à existência humana concreta e esta, em geral, anda longe de teorias, objetividades, racionalizações, descontextualizações e generalizações. A literatura – sem mencionar as extraordinárias possibilidades de experimentação da linguagem – interessa-se pelos homens, suas existências, seus atos e suas relações com as coisas do mundo. Em suma, trata, sempre de forma ficcional ou poética, de vidas e vozes particulares, de experiências humanas, de relações situadas entre pessoas, de emoções, conflitos, contradições, ambiguidades e subjetividades.
Daí a recorrência de temas como a busca do autoconhecimento; a busca da identidade; a dúvida entre o que é realidade e o que é fantasia; as questões morais; as sempre complexas relações com o Outro; as utopias sociais e pessoais; a luta do velho contra o novo; a luta pela construção da voz pessoal; a possibilidade da múltipla existência da verdade; as relações entre o bem e o mal; as incoerências e ambiguidades próprias do ser humano etc.
O homem é um animal que pergunta, então pergunto: se sabemos que vamos morrer por que fazemos tantos projetos? Em termos “econômicos” e “objetivos”, não parece ser uma incoerência, pura perda de tempo e energia?
Note-se que a cultura escolar sempre fugiu de incoerências, subjetividades, contradições e ambiguidades. Mais: tende a apresentar aos estudantes um mundo higienizado, homogêneo e sistematizado onde elas simplesmente não têm lugar.
Nesse ambiente “racional”, didático, técnico e utilitário, o homem é descrito como um elemento lógico e previsível, sempre em busca de sua integração no status quo.
Enquanto isso, o personagem de ficção costuma, ao contrário, ser inesperado, paradoxal e conflitado, por vezes incompreensível ou incoerente, mergulhado num constante processo de modificação e ressignificação; sempre na busca de seu autoconhecimento e da construção tanto do significado de sua vida como de sua relação com a sociedade em que vive.
Ao que tudo indica, repito, enquanto o pensamento analítico e objetivo tende a funcionar muito bem em problemas materiais e tecnológicos, diante do ser humano concreto, social, sexuado, emotivo, corporal e efêmero, repleto de ambiguidades e contradições, isso nem sempre ocorre.
3) sobre o pensamento descontextualizado.
É preciso reconhecer que o pensamento teórico e descontextualizado costuma ser um recurso poderoso embora, por vezes, possa camuflar aspectos importantes da vida cotidiana e até nos distrair da realidade.
Vou ilustrar melhor meu ponto de vista. Digamos que políticos e economistas, baseados em projeções estatísticas, venham a público garantir que, mantidas certas condições socioeconômicas, a fome e a miséria deverão ser extintas do país num prazo de vinte anos.
Seria exemplo da aplicação de uma abordagem objetiva, impessoal, teórica, técnica e descontextualizada a respeito de um processo social e vital, tratando-o como se fosse um fenômeno abstrato, mecânico e lógico. Ocorre que a vida concreta e situada não se desenvolve dentro de modelos teóricos e abstratos. O efeito da falta de emprego, casa, comida e saúde dá-se na vida real, no aqui e agora, ou seja, é contextualizado. Como farão os pobres e miseráveis para sobreviver durante os tais vinte anos?
É preciso acrescentar, por outro lado, que se políticos, economistas e estatísticos vivessem, eles mesmos e suas famílias, num ambiente de fome e miséria, certamente o referido prazo seria drasticamente reduzido. Tento dizer que noções estatísticas apresentadas como “objetivas”, “lógicas” e “racionais” escondem, muitas vezes, uma espantosa relatividade (C.f. meu artigo “Aspectos instigantes da literatura infantil e juvenil” em OLIVEIRA, Ieda de (Org.) O que é qualidade em literatura infantil e juvenil - Com a palavra o escritor, São Paulo, DCL, 2005).
O mesmo exemplo, aliás, poderia ser dado com relação à Educação no Brasil. Se uma lei determinasse que a elite, governantes, políticos, empresários e demais autoridades, tivessem que colocar seus filhos nas escolas públicas de 1º e 2º graus, aposto que elas seriam muito melhor equipadas, seus programas melhor pensados, os professores ganhariam melhores salários e seriam capacitados periodicamente, isso sem falar nas ótimas bibliotecas, laboratórios, computadores de primeira linha, quadras esportivas, piscinas etc.
4) sobre a objetividade.
Apesar de muitas vezes ser importante tentar examinar os fatos com isenção e imparcialidade, livre de impressões pessoais, costumes, desejos e crenças – o que, diga-se de passagem, nunca foi fácil – é preciso lembrar que, convenhamos, não é possível descartar o fato de que, em última análise, todas as metodologias, classificações, medições e sistemas de controle passam pelos sentidos humanos e, sendo assim, em certa medida, são subjetivos e relativos.
Infelizmente, com tanto discurso “técnico”, “didático”, “objetivo”, “informativo” e “utilitário” no ar, por vezes somos levados a desprezar os discursos subjetivos, considerados “inúteis”. Entretanto eles também podem ser muito importantes. Como exemplo, trago este poema do grande poeta Murilo Mendes (O menino experimental, Summus,1979).
Os dois lados
Deste lado tem meu corpo
Tem o sonho
Tem a minha namorada na janela
Tem as ruas gritando de luzes e movimentos
Tem meu amor tão lento
Tem o mundo batendo na minha memória
Tem o caminho pro trabalho
Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida
Tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
Tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão
Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.
(...)
Não creio que seja possível falar a sério a respeito de educação, sem que haja acesso, compreensão e familiaridade com textos poéticos e subjetivos.
5) sobre a crença no utilitarismo.
(...)
Segundo o filósofo Martin Heidegger, no livro já citado, a técnica, considerada pelos gregos uma forma de autoconhecimento – “conhecer-se no ato de produzir” – tornou-se, com o passar do tempo, um recurso objetivo resultante de princípios e parâmetros criados pela ciência. A modernidade, porém, caracteriza-se pelo surgimento de um processo dialético, de influência recíproca, entre ciência e técnica, com predominância da ação sempre imediatamente utilitária da técnica. O objetivo final de ciência e técnica seria extrair e tornar útil de forma controlada e ilimitada, a energia da natureza. Como o homem é parte da natureza, de dono da técnica e da ciência passa, pouco a pouco, a ser mero objeto das duas. Em resumo, para o filósofo, o princípio da técnica teria adquirido autonomia sobre o homem.
Temo que Heidegger talvez esteja certo.
Esclareço logo ao leitor que, por favor, não se trata de ir contra a ciência e a técnica ou negar sua óbvia importância mas, sim, de refletir sobre como as relações entre o homem e a tecnologia estão estabelecidas em nossos dias e, principalmente, como essas relações têm influenciado nossa vida e nossa visão de mundo.
Como é natural, num ambiente objetivo, técnico e funcionalista, invariavelmente surgem perguntas do tipo: qual a função da literatura? Qual a função da poesia?
Temos sido condicionados – e a escola tem parte nisso – a acreditar que tudo tem uma função. Pergunto: qual a função da saudade? Qual a função da amizade? Qual a função do sublime? Qual a função do ser humano? Qual a função da vida? Quem disse que tudo tem uma função?
Pensando bem, talvez as coisas mais relevantes da vida sejam justamente aquelas que não têm função alguma.
6) sobre o evolucionismo.
Para Max Weber (em Ciência e política: duas vocações. Editora Cultrix, 1985), a ideia de “evolução constante” é decorrente do conhecimento que temos com relação aos avanços científicos e tecnológicos que, de fato, têm possibilitado conquistas extraordinárias nos dias de hoje, aparentemente quase que diárias.
Quando, porém, utilizados como paradigma comparativo para a vida humana, esses avanços podem significar pura e simples desumanização.
É que num ambiente marcado por contínuo “progresso”, “desenvolvimento” e “evolução”, reafirmados tanto pelas descobertas científicas e tecnológicas alardeadas pela imprensa, como pela enxurrada de publicidade, sempre oferecendo produtos “totalmente novos” ou “a última palavra” sobre alguma coisa – em geral, mera retórica – num ambiente assim, repito, o homem moderno entra em crise pois examina o espelho e percebe estar sempre cada vez mais velho.
Em outras palavras, na sociedade contemporânea, individualista e tecnológica, certas condições humanas como o envelhecimento (e a morte) parecem ganhar contornos de algo esquisito, um contratempo atípico, um fenômeno inesperado, contraditório, não-natural, desconfortável e ilógico. Se tudo se desenvolve, tudo evolui, tudo progride, tudo se moderniza e se aperfeiçoa, como assimilar organismos individuais que, contraditoriamente, a partir de um dado momento, só fazem decair e tender à decrepitude e à extinção, num processo entrópico desolador?
(...)
Concluindo, tentei caracterizar e colocar em discussão certos paradigmas e premissas, largamente difundidos e valorizados, melhor dizendo, naturalizados, nos dias de hoje.
Podemos falar de uma educação que vise:
1. a integração da pessoa no sistema social vigente (individualista, tecnocrata etc.);
2. preparar para o trabalho produtivo, politicamente vinculado ao consumismo, dentro de uma ordem social a ser “modernizada” sem ser transformada;
3. a capacitação de mão de obra de diferentes níveis (em suma, “técnicos” e “executivos”);
4. a formação de cidadãos ajustados ao status quo, ou seja, técnicos-acríticos prontos para constituir mercados consumidores.
5. enfim, no lugar de cidadãos humanistas formar técnicos consumidores.
Creio, francamente, que numa escola assim não faz muito sentido discutir literatura e poesia.
Podemos, porém, sonhar com uma educação que busque:
1. a integração do sujeito aos problemas de sua sociedade;
2. a formação do cidadão que saiba pensar e se exprimir livremente;
3. a formação de pessoas que busquem o autoconhecimento sem deixar de compreender a importância e a necessidade do respeito ao Outro;
4. a formação de pessoas com pensamento crítico capazes, não só de situar-se histórica e culturalmente, mas também de discutir a respeito dos paradigmas e valores de sua sociedade;
5. a formação de pessoas que saibam refletir tendo em vista o aperfeiçoamento social e o fortalecimento da sociedade civil;
6. em suma, uma escola que sirva como agente da emancipação intelectual do estudante.
Queria muito poder discutir literatura e poesia numa escola assim! Creio na construção de uma sociedade brasileira, melhor e mais justa, mas isso só será possível quando nossos cidadãos, independentemente de idades, graus de instrução ou classe social, se derem conta de que são responsáveis pela sociedade em que vivem.
A escola tem papel fundamental nesse processo.
É preciso definir o que queremos. Formar alunos para manter o que aí está ou prepará-los para construir uma sociedade mais equilibrada, competente, inteligente, criativa e humana.
📝 Artigo com cortes criado a partir da conferência “Armadilha didáticas da leitura na escola” feita no 16º COLE Congresso de Leitura do Brasil, no Centro de Convenções da Unicamp, em 11 de julho de 2007. Está nos sites www.ricardoazevedo.com.br e http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/a88.htm.
🖼️ O desenho é do livro “Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos, Melhoramentos, 2015.
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