Qual a "função" da literatura?
Publiquei esse pequeno artigo “Qual a “função” da literatura?” na revista Carta na Escola Edição Nº 14 Março 2007. Vai aqui com pequenos acertos.
“Somos condicionados pela cultura utilitária e tecnológica que nos rodeia e sufoca, a acreditar que tudo tem uma função ou utilidade. Trata-se de uma crença equivocada e desumana. As coisas mais importantes da vida costumam ser justamente aquelas sobre as quais não cabe falar em função até porque são subjetivas. Qual a função da paixão? Qual a função do sublime? Qual a função da saudade? Qual a função da vida?
Embora não faça sentido falar em “função”, a importância da literatura (textos de ficção e poesia) é indiscutível:
através da literatura entramos em contato com assuntos humanos complexos, ausentes dos livros utilitários mas essenciais: a paixão, a busca do autoconhecimento (nas palavras de Richard Rorty, as “formas privadas de lidar com a própria finitude”), as angústias, a natural luta do velho contra o novo, a confusão entre realidade e fantasia, a mentira, a soberba, a revolta, a solidariedade, a injustiça, a morte, as utopias pessoais, a existência de diferentes pontos de vista válidos sobre um mesmo assunto, entre outros;
narrativas construídas acumulativamente, com começo, meio e fim, podem nos ensinar a pensar e a elaborar o sentido (a narrativa) de nossa própria vida. Nas palavras de Vargas Llosa, a ficção “... goza daquilo que a vida vivida – em sua vertiginosa complexidade e imprevisibilidade – sempre carece: uma ordem, uma coerência, uma perspectiva, um tempo fechado que permite determinar a hierarquia das coisas e dos fatos, o valor das pessoas, os efeitos e as causas, os vínculos entre as ações.”;
o contato com recursos fundamentais da linguagem como a metáfora. Nela, o texto diz uma coisa mas pretende dizer outras;
a literatura, mais claramente através da poesia, possibilita o contato direto com o discurso subjetivo. Compare o texto didático e impessoal “A água ferve a 100º” com “Uma parte de mim/ é todo mundo/ Outra parte é ninguém/ fundo sem fundo/ Uma parte de mim/ é multidão/ Outra parte estranheza/ solidão ...” (trecho de … “Traduzir-se” poema de Ferreira Gullar);
os personagens paradoxais, por vezes incoerentes e ambíguos, mergulhados num constante processo de amadurecimento, lutando para construir o significado da própria vida (como todos nós) e, assim, evitar uma visão idealizada do homem, ou seja, sua apresentação como um ser esquemático, lógico e previsível, sem conflitos e sem humanidade;
o contato com a noção de ficção vista aqui como a criação daquilo que nunca aconteceu, mas poderia ter acontecido. Trata-se de um recurso humano fundamental. Sem ele, os homens ainda estariam chafurdando na Idade da Pedra. Por meio da ficção, podemos imaginar coisas que ainda não existem e também um mundo melhor. Segundo Mikhail Bakthin “a ficção (a fantasia) é uma forma de experimentar a verdade”.
A literatura tem outras ótimas qualidades, mas o espaço é curto. O contato com temas da vida concreta e com vozes e visões diferentes das nossas pode, por meio da identificação, constituir um extraordinário recurso de humanização e sociabilização.
Em tempos de consumismo sem limites, pensamento meramente técnico, predominância da lógica do lucro, individualismo doentio e coisificação do homem – com efeitos nefastos numa sociedade desequilibrada socialmente como a nossa – a leitura de ficção e poesia pode ter um papel regenerador e humanizador insubstituível.”
🖼️ Ilustração do “Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos”, Melhoramentos, 2015.
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