Poemas feitos de lixo
É costume falar mal e desprezar o lixo, mas tal desapreço talvez não faça tanto sentido assim. É possível associar o lixo, o descarte, a sujeira, a imundice, a putrilagem (essa eu tirei do dicionário) para fazer poesia, ou seja, para falar de emoções humanas relativas à vida e ao mundo. Trago aqui 7 poemas pudibundos e latrineiros que tentam provar isso. Desculpe qualquer coisa!
Ninguém pode nem aguenta
Cuspir chiclete no chão
Jogar gosma na lição
Encher a boca de lama
Sujar embaixo da cama
Meleca no travesseiro
Nhaca pelo banheiro
Ser sebento, chulepento
Xexelento e fedorento
Graxa e grude no cabelo
Cueca suja nojenta
Comida com ranho e pelo
Olho cheio de pimenta
No nariz só melequeira
No sovaco ter podreira
Orelha cheia de cera
E na cabeça besteira
Encher de lixo o jardim
E o mar de tinta nankin
Respirar pó com fumaça
Tem gente que acha graça
Quem acha não tem razão
Ou é jumento ou jumenta
Viver na poluição
Ninguém pode nem agüenta!
📝Do livro Aula de carnaval e outros poemas, Ática, 2006.
Rebotalhos e bugigangas
Certa vez o rebotalho
deu a mão pra bugiganga
agarrou o cacareco
se juntou à cambulhada
e partiu num corre–corre
tramando troços e trecos
convocou o badulaque
companheiro do bagulho
chamou depois o restolho
convidou traste e entulho
e lá se foram gosmentos
cacarentos, perebentos
lambequentos, muquifentos,
xexelentos, fedorentos
melando pelas calçadas
enlambuzando as estradas
até cumprir sua sina:
ir pro fundo da latrina.
📝Do livro Aula de carnaval e outros poemas, Ática, 2006.
Quem gosta de lixo, levanta a mão!
Quem gosta de trelha
Quem gosta de traco
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de respa
Quem gosta de rasto
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de gruma
Quem gosta de gosde
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de cuspa
Quem gosta de caspe
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de mocha
Quem gosta de manfo
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de lomo
Quem gosta de lido
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de virme
Quem gosta de verus
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de sabo
Quem gosta de serro
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
Quem gosta de mosta
Quem gosta de berda
Quem gosta de lixo,
Levanta a mão!
📝Do livro Ninguém sabe o que é um poema, Ática, 2004.
Procura-se sobras...
Procura-se sobras de aparas
de bagaços de raspas de dejetos
de cacos de despojos
de refugos de detritos de destroços
de escombros de frangalhos de fiapos
de migalhas de farrapos de retalhos de resquícios
de ruínas de ossadas de esperança.
Aceitamos doações.
📝Do livro Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos, Melhoramentos, 2015.
Quadrilha da sujeira
inspirado em “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade
João joga um palitinho de sorvete na rua de Teresa que joga uma latinha de refrigerante na rua de Raimundo que joga um saquinho plástico na rua de Joaquim que joga uma garrafinha velha na rua de Lili.
Lili joga um pedacinho de isopor na rua de João que joga uma embalagenzinha de não sei o quê na rua de Tereza que joga um lencinho de papel na rua de Raimundo que joga uma tampinha de refrigerante na rua de Joaquim que joga um papelzinho de bala na rua de J. Pinto Fernandes que ainda nem tinha entrado na história.
📝Do livro “Você diz que sabe muito, borboleta sabe mais!”, Moderna, 2007.
Quem vem lá boiando no rio?
É um barquinho de papel feito por um menino matando aula?
Uma folha de jornal?
Um baú de recordações?
Uma cédula de identidade?
Uma caixa-preta contendo verdades inexplicáveis?
Uma nota de mil?
Um mero ponto de vista?
Um artefato inútil?
Um manual de instruções?
Uma panacéia?
Anotações filosóficas atiradas ao léu?
Um plano de ação?
Um corpo afogado?
Pílulas anestésicas?
Pedaços picados de uma carta de amor?
Formas abstratas sem qualquer significado?
Mercadoria proibida por lei?
Um diário íntimo?
Um estupefaciente?
Um cheque sem fundo?
O resultado de um exame laboratorial?
Um documento falsificado?
Um brinquedo?
Um plágio?
Uma senha?
Uma sina?
Um cálice de veneno?
Uma prova de auto-estima?
Um artigo de fé?
Um holerite?
Um canto de sereia?
Propaganda?
Letras de sangue contaminado por vírus?
A confissão de um crime ou de um sonho?
Uma garrafa trazendo a esperança
última de um náufrago?
Chegou a hora.
É urgente, urgentíssimo.
Torna-se imprescindível descobrir,
de uma vez por todas,
quem vem lá
boiando
nas palavras desse rio.
📝 Do livro Ninguém sabe o que é um poema, Ática, 2004.
🖼️ Imagem e poema do cabeçalho do Livro de papel, Editora do Brasil, 2010.
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