Trago hoje trechinhos do livro “O motoqueiro que virou bicho”, Moderna, 2003, escrito a partir da leitura de “O asno de ouro”, de Lúcio Apuleio, escrito no século II D.C. No meu livro, o jovem Lúcio de cerca de 18 anos idade, vê-se transformado num cachorro e parte para uma viagem em busca de voltar a ser ele mesmo. Não tenho como explicar aqui como aconteceu essa metamorfose, mas neste momento do livro, capítulo 18, ele acaba de fugir do “Canil Primavera”, de um tal de Renatão, um cara meio louco que pretende acabar com os vira-latas do mundo, com a ideia de purificar as espécies caninas. Lúcio, transformado em cão está, neste momento, andando na beira de uma estradinha de terra, na região do Vale do Paraíba, um tanto desesperado, morrendo de fome e sem saber o que fazer da vida. Embora no momento esteja sem editora, considero “O Motoqueiro que virou bicho” um dos meus melhores livros.
18
“Acordei com duas ideias na cabeça. Dar um jeito de chegar a Silveiras e, antes, arranjar urgentemente um pouco de comida.
Bebi água numa poça ali perto e peguei a estradinha de terra que, pelos meus cálculos, seguia mais ou menos paralela à Dutra. Havia um buraco em meu amor-próprio [por reconhecer que era um vira-lata] e outro, cada vez maior, em minha barriga. Andava e ia imaginando comidas: um prato generoso de strogonoff de filé mignon; camarões ao catupiry; bifes à milanesa; lasanhas cheias de queijos; um alucinante prato com bife, arroz, feijão, farofa, batata frita e ovo frito por cima.
Xingava a mim mesmo, arrependido por não ter nem ao menos experimentado a sopa de fubá servida no Sítio Santa Rita. Não podia ser tão ruim assim, afinal, além de ser a comida diária dos outros cachorros, alimentava, era quente, e isso, pensava eu agora, não era pouco.
Uma Brasília branca com um velho guiando e uma menina ao lado passou, espirrando lama em cima de mim.
Fiquei parado na estradinha de terra. Minha vontade era desmoronar, chorar e cavar um buraco no chão que fosse dar direto em minha casa em São Paulo. Como cair e chorar não adiantava nada, e esburacar o chão muito menos, saí da estrada e peguei uma picada de terra. Meu instinto canino dizia que por perto havia água. Realmente, logo adiante encontrei um riacho.
Lavei o rosto, matei a sede e fui andando sobre as pedras, sem direção, seguindo o curso das águas e a minha intuição.
O lugar era bonito, cheio de árvores imensas e frondosas. As borboletas voejavam, coloridas e delicadas. Passarinhos alegres cantavam no alto dos galhos. Se pudesse, caçava e comia todos eles.
Lembrei de Sultão. Se pelo menos eu soubesse como pescar uma traíra com a boca!
Tentava me concentrar para distrair a fome, quando um perfume morno bateu em meu focinho. Alguém, com certeza, estava cozinhando ali por perto. Obedecendo ao meu faro canino e hipnotizado pela esperança de comida, escalei o barranco e descobri uma casa escondida entre as árvores. Era uma construção sólida e simpática, com janelinhas vermelhas e paredes cobertas de trepadeiras. A porta aberta da cozinha deixava escapar um indescritível aroma de carne assada.
Não havia ninguém na cozinha. Meu primeiro impulso, naturalmente, foi roubar a carne, mas como abrir o forno? Como pegar a panela? O fogão estava quente e eu, agora, era cachorro e só podia contar com minha boca.
Resolvi olhar a casa por dentro. As janelas e portas da sala estavam abertas. O espaço era agradável, com estantes de livros por todos os lados. Sobre uma mesinha, uma máquina de escrever com um texto pela metade. No sofá, outra máquina coberta com uma capa de plástico transparente. Além disso, havia uma pilha de livros no chão, livros espalhados sobre a mesa e abertos em cima de um dos sofás velhos. Já estava achando que não havia ninguém em casa quando escutei vozes. Vinham abafadas, de fora, dos lados do barranco, do lugar onde o riacho fazia uma curva. O relógio pendurado na parede estava parado. O cheiro da cozinha passou de novo, só para me torturar. Saí da casa e desci o barranco. Encontrei um casal de idosos, à beira do riacho, conversando animadamente.
O velho, um gordo com jeito bonachão, usando um bonezinho branco enterrado na cabeça, estava deitado de barriga para cima sobre uma toalha, com os braços cruzados atrás da cabeça. A mulher, de cabelos brancos e curtos, magra e alta, usava óculos escuros, vestia bermuda xadrez e estava nua da cintura para cima. Brincava com os pés enfiados no rio, sentada numa cadeira de alumínio.
Apesar do perfume da carne assada me deixar atordoado, decidi ficar por ali. Cedo ou tarde, aqueles dois iam ter que almoçar e aí, quem sabe, com jeito, não sobraria um restinho de comida para mim?
O gordo falava pausadamente, examinando as nuvens do céu. Vou tentar, leitor, reproduzir mais ou menos aquela conversa, gravada até hoje em minha memória.
“Vamos supor”, disse ele, “vamos supor, vamos supor, vamos supor. Um dia, um desconhecido aparece aqui no sítio, atravessa o rio, pára em cima da pedra e afirma, alto e bom som: ‘Senhoras e senhores, estou mentindo!’. Em seguida, vira as costas e vai embora.”
Segundo o velho, caso isso acontecesse, tanto ele mesmo como a mulher seriam vítimas de uma dúvida atroz. Explicou que se a frase “estou mentindo” fosse verdade, então o sujeito não estaria mentindo e sim dizendo a verdade. Se, por outro lado, ele estivesse mentindo, “então”, concluiu o velhote, rindo, “ele também não estaria mentindo e sim dizendo a verdade!”.
A velha assobiava baixinho.
O gordo disse que na vida as coisas eram assim, complicadas, repletas de acasos e alternativas. Chamou a outra de ingênua. Caçoou.
“E você, é incrível, fica aí com essa mania de que tudo no mundo tem lógica!”
“Não é mania”, respondeu a velha de pele queimada, brincando de bater com a sola dos pés na água do riacho. “É, apenas, uma questão de saber enxergar a realidade!”
E pediu que o amigo examinasse em volta. Disse que só um cego teimoso como ele não via que tudo ali fazia sentido. Segundo ela, a realidade era formada por infinitos sistemas interagindo. Cada sistema, porém, tinha sua estrutura e sua lógica. E falou em ciclos e ritmos. No dia que vinha depois da noite que vinha depois do dia. Na grama que alimentava o inseto, que alimentava o bicho pequeno, que alimentava o bicho maior, que alimentava o bicho maior ainda. Depois, “evidentemente” disse ela, todos esses bichos morriam e eram comidos por micro-organismos que por sua vez realimentavam a terra e faziam a grama crescer.
“Veja o caso da semente”, continuou ela. E falou em sementes que brotam, crescem, viram árvores, dão flores e depois frutos. “Diga o que existe dentro dos frutos?”, perguntou ela. “Sementes!”, respondeu ela mesma, entusiasmada.
E as sementes levadas pelo vento, por formigas ou pássaros, caíam mais adiante e acabavam germinando, brotando, e tudo começava outra vez. Disse mais. Falou que as árvores tinham sementes, que os insetos tinham sementes e que os homens também tinham.
“A ideia de que tudo tem uma origem, se você pensar bem, é revolucionária e provavelmente veio do conceito de semente.”
O gordo soltou uma gostosa gargalhada. Chamou a mulher de doutora honoris causa do idealismo. Disse que a outra falava de um mundo teórico e esquemático, um universo abstrato que “absolutamente” não existia. Afirmou que o mundo “definitivamente” não era um sistema organizado e lógico. Na opinião do sujeito, pelo que eu entendi, a manifestação das coisas e dos fatos se dava num sistema desencontrado, caótico, sem lógica alguma, um processo cheio de acasos e imprevistos. Mandou que a mulher olhasse as nuvens do céu. Perguntou se elas às vezes formavam desenhos e figuras reconhecíveis. A resposta foi sim.
“É isso!”, disse o gordo, com um jeito simpático, retirando cuidadosamente uma formiga de dentro do umbigo.
Disse que as nuvens formavam figuras aleatórias, figuras sem nexo, possibilidades ao acaso. No entanto, as pessoas faziam projeções, viam significado naquelas formas, inventando ordem onde havia apenas caos. Aliás, as pessoas, concluiu ele, em geral costumavam ver apenas aquilo que queriam ver.
O cheiro da carne invadiu meu focinho feito um ataque aéreo.
A velha se espreguiçou. Chamou o outro, carinhosamente, de irracionalista. Disse que discordava. Para ela a vida e o mundo formavam um sistema bastante equilibrado.
“Pode reparar”, dizia ela.
Afirmou que tudo tinha um lugar e uma função. Comparou átomos com planetas. Lembrou a impressionante e nada aleatória semelhança entre o universo e seu conjunto de galáxias, um sistema como o solar, com seus astros, planetas e satélites e um átomo com o núcleo, nêutrons, elétrons e partículas girando em volta. “Evidentemente”, eram sistemas idênticos, de dimensões diferentes, interagindo em permanente diálogo. A realidade, afirmou, era um grande e complexo sistema, e esse sistema fazia sentido, sim senhor.
O gordo se virou, de surpresa, com o dedo apontado para mim.
“Repare naquele vira-lata, por exemplo.”
Levei um susto, leitor, embora já estivesse me acostumando com aquela desanimadora classificação. O sujeito perguntou se a velha achava que eu estava ali por alguma razão especial. Riu vitorioso. Afirmou que, se tudo era um sistema lógico, tudo deveria ter uma razão de ser. Riu mais. Quis saber o que, na teoria da outra, teria me trazido até ali. Seria o destino? Lembro-me de ele frisar a palavra destino.
O cheiro da carne estrangulava minha garganta. Eu fazia o impossível para acompanhar aquela conversa complicada, sentindo um rio de saliva escorrendo da boca.
Para a mulher, não era por aí. Segundo ela, havia, claro, muitas coisas que ocorriam por acaso. O acaso simplesmente faz parte do sistema, explicou ela acendendo um cigarro.
“Por outro lado, você há de concordar, há fenômenos que não conhecemos.” E garantindo que o fato de não conhecermos uma coisa não tirava, de forma alguma, o sentido dessa coisa, completou:
“Não tem sentido para nós, num dado momento!”
E lembrou que os povos antigos, por exemplo, tiveram que, um dia, desenvolver a linguagem. Os homens eram animais rosnando e fazendo ruídos sem sentido. Depois começaram a repetir determinadas interjeições para comunicar, por exemplo, prazer, perigo, alegria, dor, medo, sins e nãos. Esses ruídos, aos poucos, foram se fixando, mais ou menos, servindo para designar isso e aquilo, acabaram virando convenções, deram nomes às coisas e, assim, a linguagem nasceu. Lembrou que com o processo de fecundação humana ocorreu algo parecido.
“Os povos arcaicos, ‘evidentemente’, faziam sexo”, disse ela, “mas tudo era instinto.”
Não sabiam o resultado daqueles impulsos prazerosos e irresistíveis. “Naturalmente” inventaram inúmeras teorias mágicas, deuses da origem e da fertilidade, para explicar como as mulheres, de repente, ficavam diferentes, com os peitos inchados, barrigudas e, depois, davam à luz.
“Demorou milhares de anos, você sabe, para esse assunto ficar esclarecido.”
“Esclarecido?”, retrucou o velho com expressão fingidamente escandalizada.
Para ele, aquilo tudo era palavrório. Para ele, antes diziam que eram deuses da fertilidade. Hoje dizem que espermatozoides fecundam óvulos.
“Daqui a mil anos vão dizer outra coisa, tenho certeza!” E lançou seu risinho implicante no ar.
Segundo ele, o surgimento da linguagem ou a história da fecundação, em si, não tinham o menor interesse. O que importava era o uso, o tom, o peso da palavra empregada num dado momento. Os “como” eram muito mais importantes do que os “o quê”.
“Um grunhido primitivo, de repente, pode valer mais do que mil palavras.” O velho coçou o nariz.
Perguntou sobre a paixão. De costas na toalha, abriu os braços, suspirando profundamente. Quis saber o que fazia um homem, um belo dia, ficar apaixonado por uma mulher. Era bom senso? Era lógica? Era instinto? Destino? Acaso? Por que justo aquela e não outra? E se o sujeito não tivesse conhecido aquela? E as outras? Colocando o dedo na testa, o gordo pediu que a mulher de peitos de fora raciocinasse.
“A vida das pessoas são construções ‘absolutamente’ caóticas e discutíveis. O sujeito conhece uma mulher, casa, tem filhos, tudo por acaso. Se morasse em outro bairro, conheceria outra mulher, teria outro casamento, outros filhos. É ou não é?”, perguntou. “Ou você agora vai ter a coragem de me falar em almas gêmeas?”
O velho limpou os óculos. Garantiu que a vida era um caos, que tudo era um caos, que tudo ocorria por acaso, que uma coisa acontecia, mas podia não ter acontecido, que ele estava ali no sítio conversando com ela à beira do rio por causa de um monte de coincidências sem sentido, a começar pelo seu nascimento, segundo ele um autêntico absurdo. Disse que a vida era um monte de fatos ocorridos a esmo e que ele, pessoalmente, achava isso ótimo.
Pousou os olhos em mim. Franziu o nariz como se estivesse farejando alguma coisa. Perguntou se a mulher estava sentindo cheiro de comida.
Estremeci, com os olhos úmidos de alívio.
19
Esticando o pescoço, a mulher abriu as narinas. Talvez sim, respondeu. Cheirou o ar de novo. Concluiu que era cheiro de carne. Alguém, disse ela, devia estar preparando um churrasco ali perto.
O gordo fechou os olhos, com ar sonhador.
“Você sempre usando a lógica!”
E partiu para as conjeturas. E se, por exemplo, os últimos remanescentes de uma tribo indígena, escondida no mato e ainda desconhecida da civilização, estivessem fazendo um festim antropofágico ali perto? Ela ia chamar uma cerimônia profundamente religiosa e mítica de “churrasco”? E se, por exemplo, uma indústria química estivesse iniciando suas atividades na região e seu produto principal fosse justamente aroma artificial de carne? E se, por exemplo, um grupo de charlatões de uma dessas seitas, falsos religiosos enganadores do povo, houvesse sido preso e agora seus membros estivessem sendo queimados vivos, linchados pelo povo revoltado? O gordo ria.
A velha se espreguiçou, pensativa, esticando os dois braços para cima. Disse que o que o outro estava fazendo era um mero exercício de imaginação. Disse que nem tudo o que o ser humano imaginava ou inventava tinha interesse. Aliás, completou, quase tudo o que o homem pensa não serve para nada. Disse que aquela história de índios antropófagos, aromas artificiais e charlatões enganadores do povo era pura ficção. Segundo a lei das probabilidades, eram alternativas possíveis, mas extremamente remotas. O lógico, o razoável, o mais provável e condizente com a realidade e o senso comum era simplesmente que alguém, uma família, por exemplo, estivesse preparando um churrasco pelas redondezas.
Eu não acreditava, leitor. Minha cabeça latejava diante daquela conversa absurda. Minha boca babava. Meus dentes queriam cair.
Sem conseguir me conter, comecei a gritar, implorando que os dois parassem com aquela conversa mole sem sentido. Só consegui rosnar e latir.
“Sou obrigado, em parte, a concordar com sua argumentação”, considerou o gordo, passando as unhas debaixo do queixo, “mas...”
E pediu que a velha olhasse bem para mim. Comparou os homens aos animais. Disse que os homens viviam cheios de expectativas, de ideias preconcebidas, de projetos, teorias e verdades a respeito de tudo. “No fundo, o que incomoda no ser humano”, continou ele, “é exatamente isso. Em vez de olhar a realidade concreta e as coisas práticas, os homens ficam teorizando. Falam em “liberdade”, mas costumam ser os donos da verdade. Falam no “amor”, mas nunca da prática do amor”. O velho afirmou que, para ele, essas idealizações eram simplificações e tinham um objetivo muito claro: controlar a realidade. No mundo da teoria, tudo tem que ter um rótulo, tudo tem que ter um sentido, tudo tem que ter uma utilidade, tem que ser mensurável e existir especificamente por causa de alguma coisa, senão não interessa nem existe, e isso é lamentável.
“Como medir um sentimento? Como medir um gosto? E outra: uma borboleta serve exatamente para quê?”, perguntou ainda.
“Agora repare nesse belo animal!”, pediu o velho, sentando-se na toalha e apontando para mim.
E afirmou que os cachorros eram seres cheios de paz. Mandou que a mulher olhasse dentro dos meus olhos e reparasse o quanto eu era despreocupado.
Eu não sabia se chorava ou se ria.
Para os animais, explicou ele, a vida sempre está acontecendo agora. Nenhum bicho está preocupado com o passado nem muito menos com o futuro.
“Todo homem inteligente devia sentir uma profunda inveja e um profundo respeito diante de um animal como este”, disse o homem gordo, ficando de joelhos em cima da toalha e fazendo uma reverência em minha direção.
A velha sem blusa ria, assoando o nariz.
Pelo cheiro, a carne assada devia estar derretendo no forno. Lembro de me sentir desesperado. Lembro de ter me deitado, colocando as duas patas sobre a cabeça.
“Veja que maravilha!”, gritou o velho, entusiasmado.
E descreveu a naturalidade e a graça dos movimentos dos animais. Confessou que já havia passado horas e horas examinando cachorros. O jeito como eles acordavam, sem nenhum compromisso. A segurança e determinação com que andavam pelas ruas, sem ter para onde ir. O dia passando e eles simplesmente agindo conforme a necessidade do momento. Era, segundo ele, uma arte suprema saber não fazer nada e, ao mesmo tempo, ter um dia cheio de vida e de movimento.
“Os cachorros ‘são’!”, concluiu ele de maneira bombástica. “Os homens vivem tentando ‘ser’ sem conseguir, e sabe por quê? Justamente por causa dessa mania de ficar racionalizando, querendo entender um sistema que não existe, encontrar uma função e um sentido para tudo.”
A mulher retirou os pés da água e calçou uma sandália de couro. Vestindo a blusa, disse que, talvez, a carne já estivesse no ponto.
“É mesmo!”, disse o outro e, apontando para mim, fez uma proposta. Se ela não se incomodasse, gostaria de me convidar para o almoço. Afirmou pomposamente que seria uma grande honra ter à mesa a companhia de um animal superior, um legítimo representante dos seres irracionais.
E lá fomos nós.
Os velhos, sempre gentis e alegres, puseram três pratos na mesa, arrumaram um banquinho com uma almofada alta para mim e ainda amarraram um guardanapo em meu pescoço.
Apesar da fome, leitor, consegui não bancar o esganado. Comi com a maior delicadeza possível. Aqueles dois eram pessoas educadas e, numa situação daquelas, eu não poderia me comportar mal.
Além da carne assada e muito bem passada, foram servidos uma omelete recheada com queijo e tomate, arroz, feijão-preto, farofa e uma salada de alface com palmito. Para beber, suco de maracujá. Comi de tudo e ainda aceitei um pouco de suco.
Não posso deixar de fazer uma confissão. Quase parei de respirar ao ver aquele banquete diante de mim. Depois chorei, leitor, ao sentir entre os dentes os primeiros pedaços de comida. Foi, tenho certeza, a melhor refeição que já comi em toda a minha vida. Melhor que os melhores sonhos. Naquele momento, sinceramente, tanto fazia ser gente ou cachorro. Aquele alimento parecia Deus, de repente, entrando em mim, ocupando calorosamente minha boca, minha língua, enchendo meu peito, meu estômago e minha alma.
Após a sobremesa, pudim de pão, e o cafezinho, sentamos na varanda. Uma brisa morna ia e vinha, afagando meu focinho. A mulher, com um cigarro na boca, as pernas esticadas sobre uma mesinha, comentou que, durante a conversa matinal, havia se lembrado de uma história antiga.
Refestelado no sofá, o velho gordo quis saber que história era. Eu, num indescritível estado de plenitude, sentindo a barriga roncando de prazer, arranjei lugar numa poltrona. A história que a mulher contou era mais ou menos assim:
Certa vez, um príncipe, filho de um rei muito rico e poderoso, procurou o pai. Queria correr mundo. Precisava conhecer outros povos, outros costumes e outras pessoas. Foi mais fundo. Confessou sentir vontade de conhecer mais a vida e a si mesmo.
O rei era um homem compreensivo, aceitou os argumentos do filho e, abraçando-o, desejou-lhe boa sorte.
O jovem partiu a cavalo e, durante meses e meses, percorreu as estradas e os lugares do mundo.
Infelizmente, quanto mais andava, mais ficava assustado. Por todo lado só via miséria, desespero, violência e injustiça. O jovem não se conformava. “Como o mundo é diferente do que eu imaginava e daquilo que aprendi nos livros, na escola e nas palavras de meus pais. Que mundo é este”, perguntava, “onde o Bem quase não existe e o Mal impera sobre todos e sobre tudo?”
Um dia, o viajante encontrou um sábio no alto de uma montanha. O velho lia deitado debaixo de uma árvore. Parecia ser gentil e acessível. Sentindo vontade de se aproximar e puxar conversa, o rapaz desceu do cavalo, deu boa-tarde e perguntou o que o homem estava lendo. O livro do destino, respondeu o eremita. Curioso, o príncipe pediu para examinar a obra, um calhamaço antigo com a capa de couro rasgada. Esta, porém, havia sido escrita em uma língua desconhecida.
Notando o rosto amargurado do rapaz, o sábio perguntou se podia ajudar em alguma coisa.
O jovem chorou. Confessou que se sentia angustiado e decepcionado. Estava cansado de viajar pelo mundo e só encontrar desgraça, jovens morrendo nas guerras, gente pensando apenas em dinheiro, crianças pedindo comida nas ruas.
Em resposta, o velho afirmou que, apesar das aparências e de tantas mazelas, a justiça e a verdade existiam. Explicou que o ser humano podia por vezes ser confuso e frágil e cometer terríveis enganos, mas no fim o Bem prevaleceria. Era o Destino, garantiu confiante.
Incrédulo, o príncipe viajante agradeceu a conversa, explicando que precisava partir. O velho perguntou se podia acompanhá-lo por alguns dias. Talvez, durante a caminhada, disse ele, pudesse ensinar certas coisas sobre a vida. O rapaz aceitou. O velho, porém, fez um pedido. Era importante. O rapaz precisava jurar que, houvesse o que houvesse, jamais o abandonaria no meio da jornada.
O príncipe concordou e os dois partiram.”
Paro por aqui.
📝 Capítulos 18 e 19 do livro “O motoqueiro que virou bicho”, Moderna, 2003.
🖼️ A imagem é a capa do livro que pode ser encontrado aqui.
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Belo texto , Ricardo.
A degustação desse trechinho faz a gente querer conhecer toda a estória do motoqueiro que virou cão, principalmente nesse momento conturbado em que vivemos.