O filho mudo do fazendeiro
Tenho orgulho de ter podido recontar esse incrível e maravilhoso conto popular.
Era uma vez um fazendeiro muito rico. O homem tinha fazendas, plantações, criações de gado, usinas e um monte de dinheiro. Infelizmente seu único filho tinha nascido mudo.
O fazendeiro fez de tudo. Convocou médicos, consultou sábios e videntes, experimentou remédios e tratamentos. Chegou até a mandar chamar feiticeiros e curandeiros. Nada adiantou. A boca de seu filho parecia um deserto morto, silencioso e sem sentido.
Quando o rapaz completou dezoito anos, o fazendeiro mandou espalhar uma notícia. Era uma promessa. Quem conseguisse fazer seu filho falar ganharia uma rica fazenda, muito gado e muito dinheiro. Mas o homem também mandou uma advertência: quem tentasse e não conseguisse teria a cabeça cortada e o corpo atirado nas águas do rio.
O prêmio era muito bom. Vários homens criaram coragem e resolveram arriscar. Todos, infelizmente, tiveram suas cabeças cortadas e seu corpo devorado pelos peixes do rio.
Perto da fazenda morava uma moça. Ela era pobre e não tinha pai nem mãe. Vivia com sua avó num casebre caindo aos pedaços.
Certa manhã, a moça acordou e foi correndo procurar a avó:
– Vó, tive um sonho. Foi uma voz. Apareceu no meio da noite. Me mandou ir à fazenda tentar fazer o filho do homem falar!
A velha continuou varrendo a cozinha. Para ela aquilo era besteira da grossa. Bobajada de menina sem juízo.
– Voz? disse a avó balançando a cabeça. – Era só o que faltava!
Achava melhor a moça tirar aquele sonho da cabeça. Lembrou dos mil homens que tinham virado comida de peixe.
– É perigoso, filha!
Mas a menina encasquetou com o sonho. Teimou. Disse que ia. Disse que tinha coragem. Disse que ia tentar.
– Vou precisar de sua ajuda, vó!
– Ajudar como? Quis saber a velha colocando os óculos.
A menina explicou. Fez um pedido. A avó tinha experiência de vida e muita sabedoria. Que ela lhe ensinasse tudo o que sabia.
– Mas isso vai demorar muito! disse a velha.
– Não faz mal.
– Mas vai ser muito cansativo!
– Não faz mal.
– Mas vai ser preciso muito esforço!
– Não faz mal.
A velha, então, disse que ensinava, mas com uma condição. Durante três dias e três noites ela falaria sem parar, contando tudo o que sabia sobre a vida e sobre o mundo.
– Só se você prometer que vai ficar acordada e aguentar firme.
A menina prometeu e assim foi.
O sol apareceu e desapareceu três vezes no céu. Enquanto isso, a velha mulher falou, falou e falou contando tudo o que tinha visto, experimentado, sentido, pensado e aprendido ao longo de sua longa vida. Descreveu erros e acertos. Jeitos e maneiras. Horas de ir e fazer. Horas de parar e ficar.
No quarto dia, cansada mas confiante, a moça acordou cedo, despediu-se da avó e partiu. Foi falar com o fazendeiro.
Ao ver a menina o homem deu um muxoxo.
– Se até homem esperto, sábio e forte já veio e não conseguiu nada!
Balançando a cabeça, o fazendeiro aconselhou a menina a voltar para casa.
– Não quero ser obrigado a mandar cortar um pescoço tão lindo!
Mas a menina insistiu. Lembrava do sonho e da voz que tinha escutado dentro da escuridão.
Admirado com a coragem da moça, o fazendeiro acabou concordando.
– Você vai ter que passar a noite no quarto com meu filho e uma testemunha. Quero ver se consegue ou não fazer o menino falar!
A moça foi. Deitado na cama, o filho do fazendeiro olhava e olhava sem dizer nada. A testemunha sentada na cadeira espiava o tempo demorado.
Quando deu um hora da manhã, a moça pediu:
– Por favor testemunha. Estou com muito medo. Sinto que vou morrer amanhã. Será que você pode contar uma história que me faça esquecer da morte que vem vindo me pegar?
A testemunha explicou que era apenas uma testemunha e não sabia contar história nenhuma.
– Então eu mesma conto, respondeu a moça.
E contou que era uma vez três lindas irmãs. A mais velha tinha um binóculo encantado que via tudo o que acontecia no mundo. A do meio tinha uma carruagem com asas que levava as pessoas aonde quisessem ir. A menor tinha uma fruta mágica capaz de fazer gente morta voltar a viver.
Um dia, as três irmãs estavam com o binóculo encantado espiando as coisas do mundo quando viram um lindo príncipe de um país distante. O rapaz estava na cama doente. O rapaz tinha acabado de morrer.
As três irmãs não se conformaram.
Saltaram na carruagem com asas e voaram até o reino distante. Lá chegando, a mais moça foi correndo colocar um pedaço de fruta na boca do príncipe. Ao senti-la nos lábios, o rapaz abriu os olhos e voltou a viver.
– E agora eu pergunto, disse a moça à testemunha. – Com qual das três irmãs o príncipe deve se casar?
A testemunha não sabia. Disse que a questão era muito difícil. Disse que era apenas uma testemunha e de histórias não entendia nada.
Foi quando o filho do fazendeiro falou:
– Tenho uma opinião sobre essa história.
– Que bom ouvir sua voz! exclamou a moça.
O rapaz achava que o príncipe devia se casar com a irmã mais moça, a dona da fruta mágica.
– Você tem razão, disse a moça admirada. – As duas outras irmãs continuaram com a carruagem de asas e com o binóculo encantado. A única que realmente deu alguma coisa foi a irmã caçula que salvou a vida do príncipe mas ficou sem sua fruta preciosa.
No dia seguinte, o fazendeiro apareceu. A moça contou o que havia acontecido, a testemunha confirmou tudo, mas o rapaz, deitado na cama, não disse uma palavra. O homem ficou desconfiado.
– Vamos fazer o seguinte, disse o fazendeiro. – A moça vai ter que passar outra noite no quarto com meu filho. Agora com duas testemunhas. Quero ver se consegue fazer ou não o menino falar!
A moça foi. Deitado na cama, o filho do fazendeiro olhava e olhava sem dizer nada. As duas testemunhas sentadas em duas cadeiras espiavam o tempo demorado.
Às duas horas da manhã a moça pediu:
– Por favor testemunhas. Estou com muito medo. Sinto que vou morrer amanhã. Será que vocês podem contar uma história que me faça esquecer da morte que vem vindo me pegar?
As testemunhas explicaram que eram apenas duas testemunhas e não sabiam contar história nenhuma.
– Então eu mesma conto, respondeu a moça.
E contou que era uma vez um casal que se dava muito bem. Os dois se gostavam muito e viviam uma vida cheia de felicidade.
Acontece que a mulher tinha um segredo. Toda sexta-feira, à meia noite, quando o marido estava dormindo, ela virava bruxa e saía pelas estradas para cumprir sua sina.
Certa noite de sexta-feira, o marido voltou do trabalho mais tarde e, no caminho, encontrou uma bruxa.
Assustado, antes de fugir para casa, atirou três pedras. Uma acertou o calcanhar. A outra, o cotovelo. A última, o dedo mindinho da mão esquerda da bruxa.
No dia seguinte, ao acordar, o homem percebeu que sua mulher estava com o calcanhar, o cotovelo e o dedo mindinho da mão esquerda machucados.
Desconfiado, tanto fez, tanto falou, tanto perguntou, tanto insistiu que no fim a mulher acabou confessando a verdade: infelizmente era uma bruxa.
– E agora eu pergunto, disse a moça às duas testemunhas. – O que o marido deve fazer? Ficar com a mulher ou ir embora?
As testemunhas não sabiam. Disseram que a questão era muito difícil. Disseram que eram apenas duas testemunhas e que de histórias não entendiam nada.
Foi quando o filho do fazendeiro falou:
– Tenho uma opinião sobre essa história.
– Que bom ouvir sua voz! exclamou a moça.
O rapaz achava que se o marido gostava da mulher, devia ficar com ela mesmo que ela fosse uma bruxa.
– Você tem razão, disse a moça admirada. – Um casal que se ama precisa aprender a conviver com as diferenças um do outro. Além disso – completou ela – um casal que se ama sempre tem segredos para compartilhar.
No dia seguinte, o fazendeiro apareceu. A moça contou o que havia acontecido, as testemunhas confirmaram tudo, mas o rapaz, deitado na cama, não disse uma palavra. O homem ficou furioso. Ameaçou cortar o pescoço da moça ali mesmo.
A moça baixou a cabeça.
Deitado na cama, o filho do fazendeiro ficou só olhando.
As duas testemunhas pediram a palavra. Garantiram, mais um vez, que a moça tinha contado a verdade.
– Vamos fazer o seguinte, disse o fazendeiro. – É a última vez! A moça vai passar outra noite no quarto com meu filho. Agora com três testemunhas. Quero ver se ela consegue fazer ou não o menino falar!
A moça foi. Deitado na cama, o filho olhava e olhava sem dizer nada. As três testemunhas sentadas em três cadeiras espiavam o tempo demorado.
Às três horas da manhã a moça pediu:
– Por favor testemunhas. Estou com muito medo. Sinto que vou morrer amanhã. Será que vocês podem contar uma história que me faça esquecer da morte que vem vindo me pegar?
As três testemunhas explicaram que eram apenas testemunhas e não sabiam contar história nenhuma.
– Então eu mesma conto, respondeu a moça.
E contou que era uma vez um rapaz que vinha andando por uma estrada deserta. De repente, uma luz surgiu brilhando. A luz não era luz. Era uma linda mulher. Apareceu no céu voando com asas douradas.
O rapaz ficou escondido atrás de uma moita. Nunca na vida tinha visto uma pessoa tão bonita.
A mulher aterrissou, tirou as asas e, nua, mergulhou numa lagoa.
Mais do que depressa, o moço foi e escondeu as asas da moça.
A noite caiu. A mulher saiu da lagoa e não encontrou as asas. Ficou sem saber o que fazer. Foi quando o moço surgiu e disse:
– Puxa, como você é bonita! Deve estar morrendo de frio. Quer o meu casaco emprestado?
A moça não tinha jeito. Aceitou.
– Moro aqui perto, disse ele. – Quer passar a noite em minha casa?
A moça não tinha jeito. Aceitou.
Os dois acabaram conversando, trocando idéias e gostando um do outro. Passaram a viver juntos.
O tempo passou. A mulher teve um filho.
Quanto o menino completou sete anos, estava um dia brincando no mato e encontrou uma lagoa. Mexendo aqui e ali, achou um par de asas douradas atrás de uma moita e, encantado, levou para sua mãe ver.
– E agora eu pergunto, disse a moça às três testemunhas. – O que a mulher deve fazer? Ficar com o filho e o marido ou vestir as asas douradas e partir em busca de seu outro destino?
As três testemunhas não sabiam. Disseram que a questão era muito difícil. Disseram que eram apenas testemunhas e de histórias não entendiam nada.
Foi quando o filho do fazendeiro falou:
– Preciso fazer um comentário sobre essa história.
– Que bom ouvir sua voz! exclamou a moça.
O rapaz achava que aquela era a história mais incrível que já tinha escutado. Para o filho do fazendeiro aquela história não tinha saída.
– Se a mulher ficar com o marido e o filho, disse ele, vai abandonar uma outra vida reservada para ela. Se ela colocar as asas douradas e partir, completou ele, vai abandonar as pessoas que mais ama!
– Você tem razão, disse a moça admirada. – Há histórias que, como na vida, não têm uma única verdade ou um único desfecho. No lugar da mulher de asas douradas cada um de nós teria que construir uma resposta. Uma coisa é certa, concluiu a moça, – Para cada escolha que fazemos há sempre uma perda.
No dia seguinte, o fazendeiro apareceu. A moça contou que o havia acontecido, as testemunhas confirmaram tudo, mas o filho do fazendeiro continuou deitado na cama sem dizer uma palavra. O homem examinou a moça. Ela parecia estar falando a verdade. Examinou as três testemunhas. Elas pareciam estar falando a verdade.
Confuso, o fazendeiro balançou a cabeça.
– Chega!, disse ele.
Chamou a moça. Declarou que ela tinha vencido. Perguntou a ela o que queria ganhar.
A moca coçou a cabeça. Confessou que ainda nem tinha pensado nisso.
– Tive tanto medo de morrer, disse ela sem jeito, que nem tive tempo de pensar em mais nada.
Neste momento, o filho do fazendeiro saltou da cama, atravessou o quarto, pegou a moça pelos ombros e disse:
– Case-se comigo!
📝Está no livro “No meio da noite escura, tem um pé de maravilha!”, Ática, 2001.
🖼️ A imagem é do mesmo livro.
Quer ver todas as newsletters anteriores?
Um pouco mais sobre o meu trabalho
📚 Livros | 📄 Artigos | 💬 Entrevistas | 🖼️ Ilustrações | 🎶 Canções