Pescador precisa ter fé. Sair de barco encarando onda pode dar em tudo. Estrela marinha. Tempestade de rebentar. Monte de peixe bom. Ressaca de repente.
Pode também dar em nada. Esperar, esperar e esperar. Voltar para casa vazio.
Pescador precisa ter fé, senão não.
Aquele pescador era velho. Sabia. Andava num braço de ferro danado com o mar. Pelejando atrás de peixe, faz tempo. Mais de semana e meia.
Mar avarento de não dar um isso.
O pescador perambulando n’água. Puxando rede de um jeito e de outro. Manejando artes de quem, desde sempre, andou nos dentros do mar.
Peixe, nem sombra.
Homem que é homem não quebra. Às vezes.
Semana inteira de nada é muito.
O desânimo pegou no pescador. Fiasco de impotência. Velhice.
Pescador precisa ter fé.
Que nem andarilho solto no mundo sem onde para chegar.
Aquele dia, o pescador arrumou barco. Apertou dente. Foi.
O tempo corrói. Horas lerdas passando inexoráveis. Peixe nenhum. E a vontade do homem foi rachando. Fé feito pó de rebotalho desmilinguindo no vento.
Mar cinza com céu cinza faz horizonte desaparecer.
O velho pensou na morte. Baixou e levantou a cabeça. Escutou uma voz.
A praia longe. Dali nem dava para ver. O homem arrepiou. Voz ali? Como?
E a voz veio clara. O velho escutasse. Havia um lugar assim de peixe. Ali perto. Pescaria de engasgar navio. Mas a voz queria um trato. Ensinava, sim, o lugar. Em troca o pescador faria uma promessa. Dar a primeira coisa que visse logo ao chegar em casa.
O velho garrou a imaginar. Cabeça veloz refazendo o percurso. Voltando via o quê todo dia? Só seu papagaio velho.
Que era de estimação, era. Mas... e o deserto? E a fome? E a impotência diante daquele mar inútil?
Decidiu. Ficava sem o louro. Tossiu. Disse que sim.
A voz, então, ensinou.
Peixe tanto assim, nunca. Nem antes. Antigamente. No tempo de moço. Vida cheia de vida. Vida mansa sem empecilho.
O pescador trabalhou até tarde. Atulhou barco com peixe. Voltou feliz para casa.
Já na estrada. No caminho de terra. Virando curva. Olhos vendo e não querendo ver. Coração batendo e querendo parar. Saco cheio de peixe desmoronando sem sentido.
Era a coisa mais linda que vinha vindo, mas não podia: sua filha.
O nome da moça era Maria Gomes.
Bonita a Maria Gomes.
Corpo solto e moreno. Jeito arisco. Olhos grandes de jabuticaba.
Aliás, a moça inteira era fruta saborosa.
Chegou faceira. Beijou o pai.
O velho encarquilhou. Mil anos de repente vincando sua pele.
Os dois no caminho de casa.
Uma, flor delicada levada pelo vento.
Outro, pedra fria.
O jeito do pai acabou atravessando. Tanto peixe depois de tanto tempo e ele daquele jeito assim quieto num canto? Fartura de dar gosto na vida e ele murcho?
A mulher cansou. A filha quis saber.
Aconteceu o quê? Foi alguma coisa? Conta, homem! Desembucha!
O velho falou.
Começou de antes. Disse dos medos. Da desesperança. Desespero de voltar com um vazio nas mãos. Receio de fim chegando perto. Chorou. Pediu perdão. Contou da voz dentro do mar de repente. Da conversa. Do trato. A moça ficou em pé.
– Filha, me perdoa!
O homem soluçava. Sim! Foi barganha do diabo. É! Contrato de trocar migalha por riqueza.
As unhas do pai arranhando o rosto. A filha quieta. O corpo do velho caído no chão do pesadume.
A moça então disse:
– Pai! Não tem nada. Eu vou!
O dia seguinte amanheceu assim: céu pintado de vermelho, roxo e amarelo. Azul crescendo vasto por trás de tudo.
O velho e a moça seguiram até a praia. De mãos dadas, caminharam pela areia branca.
O mar ia e vinha amoroso.
Um pássaro assustado levantou vôo.
O velho e a moça pararam.
Uma mão surgiu longe. Mão sorrateira dentro d’água.
A voz veio e cobrou.
Pai abraçou filha.
A moça Maria Gomes arregaçou a saia e entrou no mar.
Água vagarosa tomando posse de seu corpo.
A mão pegou a moça. O pai continuou lá.
O horizonte intacto dividia o mundo em duas partes.
Água de todas as qualidades penetrando olhos. A viagem foi de umedecer alma por dentro. Maria Gomes deixou-se levar. Amoleceu.
Pensamentos rodando em dez direções. Vácuo. O perto ficando cada vez mais longe.
Quando acordou, a filha do pescador estava num castelo. Palácio suntuoso. A moça era acostumada com quase nada. Foi deslumbramento caminhar por tanta cortina de veludo. Tanta tapeçaria rara. Jóia imponente. Arquitetura de mármore, ouro, marfim e prata.
Maria Gomes passou a viver no castelo do fundo do mar.
Lugar esconjuro.
Por força de algum encanto poderoso, tudo no palácio transcorria sem ter como transcorrer.
Sim.
Não se via nem se ouvia vivalma nem nada nem ninguém. Entretanto, a mesa vivia posta. Salas, quartos e demais aposentos sempre arrumados. Jardim tratado, florido e regado como se um bando de criados invisíveis estivesse servindo o tempo todo.
A moça admirava.
No palácio havia uma sombra. Certo vulto.
Sentava com a moça nas refeições. Vagava silencioso pelos corredores. Mais. À noite, deitava com ela na mesma cama.
A filha do pescador estranhava.
Fantasma assim tão perto e tão distante. Dormir junto de feitiço.
A sombra era mansa. A moça logo acostumou.
Tudo Maria Gomes tinha.
Mas solidão é ferida. Dor invisível ardendo discreta devagarinho.
E na moça foi dando vontade de ver gente. De conversar. De ficar junto.
As lembranças desenhavam no ar o rosto enrugado do pai. A mãe risonha fazendo doce na cozinha. Conversas ao pé do fogo. O papagaio cantando.
A saudade da moça acabrunhava. Inventava pesadelo de fazer olho pular aceso no meio da noite escura.
Um dia, logo cedo, a voz veio. Chamou. Disse que agora a moça podia visitar os pais. Matar saudade.
Mas cuidado! – disse o vulto. Havia uma condição. Que a moça fosse num dia e voltasse no outro. E voltando não trouxesse nada.
Prestasse atenção! Jurasse bem! Nada trouxesse da casa dos pais. Nenhuma espécie de coisa.
A moça sorriu. Que fácil! Trazer o quê se no palácio havia quase tudo?
Aceitou. Jurou e prometeu.
Como foi bom sair do mar. Pisar terra firme. Sentir o vento morno da manhã. Pegar na pele o sopro do sol. Caminhar pela estrada de terra velha conhecida.
Foi bom dobrar a curva do caminho e avistar a casa.
Papagaio cantando no poleiro. Fumacinha branca escapulindo.
A moça bateu na porta.
O pescador abriu.
– Maria! Minha Maria!
E veio a mãe e foi tanto abraço apertado, beijo e carinho que deu gosto.
O pescador queria saber tudo.
Onde ela vivia. Como era o fundo do mar. E aquela mão? E a voz?
Maria Gomes foi contando. Descrevendo. Explicando castelo. Riquezas. Sensações. Falou no vulto.
Pai e mãe espantados.
Vulto como? Era espírito? Alma penada? Feitiço? Fantasma transparente?
A moça disse que não sabia.
A mãe sugeriu. Que na volta Maria levasse uma vela. De noite, no quarto, fizesse luz. Descobrisse afinal que vulto era aquele vulto que tanto se ocultava.
A moça não podia. Tinha jurado. Fizera promessa.
Mas a mãe insistiu:
– Que é que tem? Ninguém vai saber! É coisa pouca! Só ver o jeito da sombra e pronto!
Maria Gomes não queria. A mãe sorria balançando a cabeça branca:
– Que mal há?
A filha aceitou.
No dia seguinte, quando chegou na beira do mar, uma mão surgiu n’água. Uma voz perguntou se a palavra dada estava de pé.
A moça mentiu. Disse que não trazia nada, mas trazia.
Correu o tempo.
Noite alta. Castelo mergulhado em espuma do mar. Maria Gomes decidiu: – É hoje! – Procurou o vulto a seu lado. Sorrateira, arranjou fogo. Acendeu vela.
Aproximou-se.
Luz quando acende mostra o que a gente quer e o que não quer. O que deve e o que não deve.
A luz trêmula iluminava os contornos do quarto.
Iluminava também o rosto, o corpo, os olhos e a alma da moça.
O vulto deitado na cama era de homem. Dormindo. Homem jovem e belo.
Maria Gomes apreciou aquele corpo tranquilo. Chegou perto. Sentiu o calor que vinha do moço.
Com a vela na mão, examinava o corpo adormecido.
Esquadrinhava. Encantada cada vez mais.
Que coisa bonita! Como homem é!
E vieram impulsos. Desejos de tocar. De pegar.
Deu medo. Melhor parar! Apagar a vela logo! Olhou. Devaneou. Chegou mais perto. Uma gota mole e quente escorreu pela vela, caindo na pele do moço.
Pronto.
O corpo se mexeu. Um salto. Dois olhos arregalados.
– Malvada! Ah, ingrata!
Animal furioso zanzando pelo quarto.
Maria Gomes admirava assustada.
– Por sua causa – o dedo em riste –, por culpa sua, vou ficar encantado mais sete anos!
A moça escondeu o rosto. O jovem gesticulava.
– Por um dia! Um único dia! Maldita vela! E o trato? Você prometeu! Mentirosa! Jogou fora sete anos da minha vida!
A moça chorava arrependida.
O mal estava feito. O rapaz sentou-se na cama. Suspirou. A moça pôs a mão em seu ombro. Quis consolar. O moço empurrou. Mandou abrir a janela. Perguntou de que cor estavam as nuvens.
– Negras – disse Maria.
O moço ia partir. Antes fez um pedido. Que a moça saísse do castelo assim que raiasse o dia. Fosse de volta para a praia. Lá encontraria um cavalo branco. Quis saber das nuvens.
– Estão cinzas.
Que na praia Maria fizesse o seguinte. Cortasse o cabelo. Arranjasse roupa de homem. Disfarçada, montasse o cavalo. Viajasse. Para onde? Nada perguntasse. Aceitasse apenas. E agisse feito homem. O moço pediu por favor. Era a última chance de quebrar seu encanto. Disse que o que tivesse que acontecer aconteceria. Perguntou das nuvens.
– Agora estão brancas.
O moço ficou em pé. Foi perto da moça. Pegou. – Boba! – Beijou sua boca. Segurou pela cintura. Apertou. – Bandida! – Subiu depois numa nuvem e desapareceu.
Manhã de dois arco-íris passando ao mesmo tempo. Mar manso. Uma cabeça saindo d’água. Depois um corpo. De fêmea. Bico duro de seio grudado na roupa molhada.
Maria Gomes andou pela praia. Avistou o cavalo.
O animal levantou a cabeça. Veio garboso chegando devagar. Sabia, parece, seu papel e seu destino.
Relinchou. A moça sorriu.
Sentada na pedra, Maria Gomes cortou seu cabelo. Arranjou roupas. Costurou. Encobriu as partes formosas do seu corpo. Pensou.
Era moça donzela. Delicada. Fazer como papel de homem? Imitar de que jeito força bruta? Modo de andar? De falar?
Maria imaginava truques. Tentava lembrar. Foi sondando no fundo dela mesma a maneira melhor.
Depois, montou cavalo. Partiu.
Montaria fogosa.
O cavalo branco galopava distâncias. Cavalgava montanhas, florestas e vales como se fosse fácil.
O corpo da moça parece que entendia o corpo do cavalo.
A viagem durou sete dias e sete noites.
Chegando num reino longe, Maria arranjou emprego de jardineiro no castelo do rei.
E a filha do pescador foi se aventurando nas artes de ser homem.
Andava meio dura. Sentava de perna aberta. Falava grosso e pouco. Cuspia de lado. Pegava enxada decidida, camuflando com terra a dor das mãos escalavradas.
No castelo havia um príncipe. Único herdeiro do rei. O jovem conheceu o jardineiro numa tarde vermelha.
Puxou assunto.
O jardineiro falava o mínimo. Tipo fechado. Mocho.
O príncipe, assim mesmo, fez perguntas. Trocou ideias sobre o tempo das chuvas. A época da poda. A influência dos raios de sol no crescimento das plantas.
Perguntava, falava e examinava o jardineiro. A roupa pobre. O jeito xucro. As mãos sujas de terra.
Fato inexplicável.
O jovem de sangue azul. O nobre culto e mimado, sucessor de todo um reino, ficava mais e mais amigo do jardineiro.
O príncipe, nem ele compreendia aquela amizade.
Apenas gostava do rapaz. Apreciava estar perto dele. E deu para pensar nele. Muito.
O jardineiro arrancava mato. O príncipe vinha ver. O jardineiro preparava terra. O príncipe ajudava.
Olhos nobres distraídos, examinando lábios. Descobrindo pescoço. Orelha. Ombros delicados.
Uma noite o príncipe sonhou.
Estava debaixo de uma árvore. Ele e o jardineiro.
Os dois conversavam sentados. De mãos dadas. Um ficando mais perto do outro. Os lábios do jardineiro mexendo. Seu hálito quente. Um vento morno soprava. A boca do príncipe tocou a boca do jardineiro. O céu ficou turvo. Eram penas. Milhares de penas brancas boiando no ar.
O príncipe acordou suado. Sufocado. Não conseguiu pregar mais o olho a noite inteira.
No dia seguinte tomou coragem e foi consultar a mãe.
Veio sem jeito. Que a rainha desse um conselho. Fosse até o jardim. Examinasse um moço assim, assim, assim. E sentisse seu cheiro. Modo de andar. Tudo. Era o jardineiro novo. E que fizesse um favor. Dissesse o que tal moço tinha. Era feitiço? Estava aflito. Para ele o jardineiro parecia mais uma mulher!
Na mesma tarde a rainha foi. Chamou depois o filho. Sorria. Disse:
– Que nada! Imagine! É um rapaz delicado. Só isso.
O príncipe voltou dali a uns dias.
A rainha penteava os cabelos diante de um espelho.
O rapaz entrou no quarto. Fechou a porta:
– Mãe!
Contou seu sonho. Falou das noites passadas em claro. De sentimentos confusos. Coisas acontecendo dentro do corpo. Pediu. Que ela fosse de novo. Por favor. Que olhasse melhor. Para ele aquilo era moça.
– Moça com esse cabelo? – perguntou a rainha. – Vestida de calça assim? Filho! A troco de quê?
Mas o príncipe andava inquieto. Não sabia o que fazer.
Como tratar o tal jardineiro que mais parecia princesa? Que mais lembrava uma dama de tão lindo que ele era?
A rainha aconselhou.
Que o filho fizesse um teste. Convidasse o rapaz para jantar.
Se ele, porventura, preferisse cadeira baixa, se esperasse, por acaso, comida esfriar, aí sim, talvez fosse mulher escondendo dotes por razões que ninguém sabe.
O príncipe convidou.
Maria Gomes foi receosa. Precavida. Percebia o interesse do príncipe. Seus olhos perscrutadores.
A moça tentou lembrar como os homens se comportavam.
Falou grosso. Arrotou. Sentou na maior cadeira. Deu soco na mesa. Gargalhou. Exagerou. Comeu comida fumegando.
O filho voltou à mãe. Descreveu olhos. Pestanas. O desenho dos lábios. O perfil delicado. Contou como o jardineiro se portara. Mas – e o príncipe andava tonto pelo quarto – homem nenhum podia ter o jeito que ele tinha!
A rainha disse: – Pois bem! – Que o filho chamasse o jardineiro. Pegassem seus cavalos. Fossem até o rio num fim de tarde. Que lá os dois se despissem e tomassem banho juntos. Modo assim era infalível, disse ela. Jeito simples de julgar o que é mulher e o que não é.
Os olhos do príncipe brilharam.
O jardineiro aquele dia não podia ir. Nem no outro. No terceiro dia, Maria Gomes respirou fundo. Disse que ia. Foi pensando no fim. Na vergonha. Na quebra do trato que fizera. E agora? Disfarçar corpo de fêmea de que jeito? A moça não sabia deixar de ser ela mesma.
Chegaram. O rio corria alegre cortando a terra. Apearam. Amarraram cavalos.
O príncipe esganado foi tirando a roupa. Maria Gomes engoliu em seco. Olhou o jovem despido esperando parado em sua frente. Resignada, principiou a desabotoar a camisa. Estava no terceiro botão, quando seu cavalo, de repente, começou a relinchar e pular e corcovear, mordendo e dando coice no outro e em tudo perto.
Vestindo a roupa, o príncipe tentou acalmar o animal.
Foi atirado longe. Fugiu. Quase toma um coice.
O animal enlouquecido rebentou cerca. Derrubou o outro cavalo. Atropelou porteira. Parecia um demônio soltando fogo pelas ventas.
Dois camponeses apareceram na curva da estrada.
Reconheceram o príncipe. Quiseram ajudar. Um saiu ferido. O outro ficou no chão desacordado.
Maria Gomes lembrou do pai lidando contra peixe grande. Tomou coragem. Levantou. Pegou corda. Jogou. Gritou. Falou grosso. Xingou. Quase escorrega. Puxou. Lutou. O cavalo, doido. A moça, segurando. Chegou perto. Saltou. Rápida. O cavalo, montado, ficou manso no mesmo instante.
A noite havia caído.
O príncipe puxou seu cavalo manco de volta para o castelo.
– Mãe! – o príncipe bateu na porta. Contou do cavalo. Do jardineiro. Homem nenhum domava cavalo assim. Nem era tão cheiroso. Nem tinha tanta graça. Estava ficando louco?
– Amo aquele rapaz!
A rainha examinou o filho. Foi falando devagar. Que chamasse o jardineiro depois de um dia duro na terra. Inventasse uma desculpa qualquer para passarem a noite juntos. Um trabalho, por exemplo. Qualquer coisa. Disse que, se fosse mulher, o jardineiro não resistiria e acabaria cedendo ao sono. Que ele deixasse o rapaz dormir. Então fosse com jeito e examinasse seu corpo. Sentisse com as próprias mãos se era mulher ou o quê.
Aquele dia o jardineiro passara carregando e plantando mudas. Estava exausto. Recusou o convite. O príncipe exigiu. O jardineiro teve que ir.
Maria Gomes no quarto do príncipe, sentada com ele na cama, ajudando num trabalho sem cabimento, pressentia risco. O tempo passando. Seu corpo fraquejando. Olhos pesados. Vontade de deitar. Soltar o corpo. Afundar no sono. As horas monótonas minavam o jardineiro por dentro.
Maria Gomes lembrou do pai. Das noites inteiras passadas por ele no mar pescando e pescando.
Se ele podia, ela podia. Fincou pé. Aguentou firme aquela madrugada demorada.
O dia raiou. O jardineiro pediu licença e foi embora.
Mais tarde, uma mãe diante do desespero de um filho exclamou:
– Basta! Tudo pode ser. Há um jeito!
No outro dia, a rainha apareceu de surpresa no jardim.
Veio majestosa. Olhava distante com olhos agudos. Zanzou distraída pelas alamedas. Cheirou flor.
Passeio de cobra. Andança de logro.
A rainha chamou o jardineiro.
Não aquele. Nem o outro. Queria o jovem. O bonito.
Atrás de um arbusto, diante do rapaz, rasgou as próprias roupas. Mostrou os seios reais. Sorriu. Depois gritou. Pediu ajuda.
– Socorro! Me acudam! Me larga, animal!
Vieram guardas. Veio o príncipe.
A rainha guardando os seios acusou o jardineiro. Chamou de infame. Disse que era doido. Sem-vergonha. Disse que o moço tentou agarrar seu corpo à força.
O jardineiro colocou as mãos no peito.
– Eu?
Mentira! Traição! Maria Gomes retorcida. Não podia dizer que era moça. Não queria.
Encarou a rainha. Encontrou olhos gozando azuis.
Veio o rei. Segurou o jovem pelo colarinho. Deu soco, murro e bofetada.
– Safado! Vai pagar caro! Com a própria vida!
A rainha olhava o moço esperando.
Maria Gomes teve medo. Vontade de chorar. Soluçar. Contar seu segredo.
O jardineiro ficou quieto. Baixou os olhos.
O príncipe olhou a mãe.
Então o moço era homem! Então era tudo engano?!
Soldados atiraram o jardineiro na masmorra.
No silêncio da noite quem escutasse seu choro, quem pudesse ver de perto seu jeito de maldizer a vida e o destino descobriria, na certa, que aquele moço era moça.
O tempo passou. Chegou o dia.
Corda gadanha balançando no ar.
Gente vindo de longe assistir ao enforcamento.
O dia raiou bonito. O sol. As árvores. Os perfumes.
A natureza que é sábia quantas vezes nem repara os crimes que o homem faz.
Sob o céu de aquarela uma vida partiria à toa.
Mil pássaros coloridos sobre um pescoço quebrado.
Tambores e clarins. A plateia esperando.
No alto do cadafalso surgiu o jardineiro. Delicado. Ajeitou a mecha de cabelo caído na testa. Bonito isso ele era. Muito mais que muita moça.
O rei de pé, imponente, pediu ao povo silêncio.
Falou do crime do moço. Da desonra. Do desrespeito. Da tentativa sem nome de profanar a rainha. Pagaria com sangue aquele impulso imprudente.
Tambores martelando soturnos.
Soldados empertigados. O príncipe quieto. O povo olhando.
O rei ergueu o braço.
O condenado pediu a palavra. O jardineiro tinha um último desejo. Queria contar uma história antes que a corda levasse sua vida.
O rei consentiu.
O moço começou. Contou de há muito tempo atrás. De um velho pescador. De um mar inútil. De uma voz no fundo do mar. Falou do trato. Da desgraça. Da filha do pescador. E de uma mão. E de um castelo encantado. E mais. De uma sombra que era um moço.
O rei escutava.
O povo escutava.
A natureza parada, silenciosa.
O jardineiro contou o erro da filha do pescador. Falou da vela e da revelação. Falou de encanto e sacrifício. Das roupas de homem. Do cabelo cortado. Do cavalo branco. Da viagem ao léu. Do emprego de jardineiro.
A rainha mordeu os lábios.
O moço falou da amizade entre o filho do rei e a filha disfarçada do pescador. Amizade que virou desejo. Desejo que virou guerra. Para a filha do pescador, revelar-se seria colocar tudo a perder.
E o condenado voltou-se para a rainha. Acusou de dedo em riste. Chamou de mentirosa. Traiçoeira. Ela armara armadilha.
O jardineiro chorou. Soluçou. Gritou. A moça era ele! Era ele a filha do pescador!
Para provar, diante de Deus, do rei, do príncipe, do sol, do céu, das árvores, de tudo e de todos, despiu sua roupa em cima do cadafalso.
Deixou aparecer, esplendoroso, seu corpo de mulher.
O rei chamou a rainha. O sol aceso. O povo gritava. Olhos agradeciam existirem naquele dia.
Afobado, o príncipe empurrava a multidão tentando chegar mais perto.
No meio de tudo, explode um cavalo branco.
Surge em frente ao cadafalso.
A moça monta.
Cavalo impetuoso! Desapareceu dentro de um galope.
Tempo de travessia.
Cavalo e cavaleira. Dois corpos encaixando um no outro. Cabendo um no outro.
Viagem de transmutação.
O cavalo parou. A moça desceu.
Sorriso encantado.
O cavalo não era cavalo.
Era homem. Um moço.
Antes fora vulto, sombra prisioneira num castelo no fundo mais fundo do mar.
📝Do livro Contos de espanto e alumbramento, Scipione, 2005
🖼️ O desenho é a capa do livro.
Quer ver todas as newsletters anteriores?
Um pouco mais sobre o meu trabalho
📚 Livros | 📄 Artigos | 💬 Entrevistas | 🖼️ Ilustrações | 🎶 Canções