Falei outro dia de poemas que tratam da própria poesia. Trago hoje três poemas – de três imensos poetas – que abordam justo esse assunto.
Alguns gostam de poesia
Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
De poesia –
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.
📝SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas, trad. Regina Przybycien, São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
O lampejo
O poema não voa de asa-delta
Não mora na Barra
Não freqüenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.
Come mal dorme mal cheira a suor,
Parece demais com o povo:
É assaltante?
É posseiro?
É vagabundo?
Frequentemente o detêm para averiguações
Às vezes o espancam
Às vezes o matam
Às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.
O poema se vende
Se corrompe
Confia no governo
Desconfia
De repente se zanga
E quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.
O poema é confuso
Mas tem o rosto da história brasileira:
Tisnado de sol
Cavado de aflições
E no fundo do olhar, no mais fundo,
Detrás de todo o amargor,
Guarda um lampejo –
Um diamante
Duro como um homem
E é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.
📝GULLAR, Ferreira. Barulhos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1997.
Poesia s.f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas
frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos
com emprego de palavras imagens cores sons
etc. – geralmente feitos por crianças pessoas
esquisitas loucos e bêbados
📝BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.
🖼️ A imagem é do livro Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos, Melhoramentos, 2015.
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