Entrevista: Feito bala perdida e outros poemas
Ao contrário de muitos por aí, que a desprezam e desconhecem, acredito que o acesso à poesia, considerada inútil por alguns, seja essencial na formação tanto do indivíduo como do cidadão. Por meio dela, podemos entrar em contato com as ideias, emoções e especulações da voz poética que, por sua vez, podem fazer pensar e mesmo modificar nossas próprias ideias, emoções e especulações. Em outras palavras, o contato com a poesia significa um encontro com a subjetividade do outro e pode ampliar nossa consciência a respeito de nós mesmos, da vida e do mundo. Não é pouco. Sobre este assunto, trago aqui essa entrevista publicada no livro Feito bala perdida e outros poemas, Ática, 2007.
Entrevista com o autor
Qual é a importância da arte na vida de todos nós? Até que ponto é importante cultivar a individualidade? Com a vida cada vez mais fragmentada que levamos, onde se esconde o lirismo? Descubra as respostas para essas e outras questões na entrevista a seguir, realizada com o autor Ricardo Azevedo.
1 - O que vem feito bala perdida?
A imagem “bala perdida” surge em alguns poemas utilizada com diferentes sentidos. Uma hora é a bala perdida da violência urbana que anda solta por aí. Mas tem também o poema criado feito bala perdida, dores internas machucando feito balas perdidas e, ainda, a visão de que, de certa forma, somos todos feito balas perdidas atiradas no mundo em busca de um rumo e de um significado para nossas vidas.
2 - A linguagem ágil e direta dos poemas permeia temas como amadurecimento, desejo, consumo, drogas... Em que medida a escolha do estilo é importante na construção dos poemas?
Só sei que fujo do discurso complicado. Acho divertida uma frase do psicanalista Fritz Perls sobre o assunto. Para ele, um texto complicado “serve à tríplice função de confundir o leitor, aumentar a auto-estima do escritor e obscurecer pontos que supostamente deveriam ser esclarecidos.” Claro que a frase é cheia de humor e ironia, mas creio que ela também pode ser bastante verdadeira. No que me diz respeito, sempre procurei fazer uma “literatura popular”, no sentido de tratar de temas humanos que me representem e ao mesmo tempo sejam capazes de gerar identificação. Para isso tento utilizar uma linguagem pública, que busque o diálogo com o leitor, que possa ser compreendida e compartilhada.
3 - Os poemas de Feito bala perdida são atuais e conversam de frente com o jovem. Eles trazem também alguns palavrões. Por que você resolveu colocá-los?
Não escrevi os poemas do livro pensando exclusivamente em jovens. Problemas sociais, restrições e condicionamentos sociais, drogas, dúvidas sobre a vida, conflitos, paixões, alienações, revoltas e contradições são assuntos que dizem respeito a todos nós. Espero que o trabalho interesse a leitores de um modo geral, independentemente de faixas de idade. Quanto aos palavrões, não resolvi colocá-los e acho até que, em geral, esse recurso empobrece o texto, pois costuma ser uma solução fácil e banal. Ocorre que em dois poemas “Grogue” e “E agora meu?” eles surgiram do interior do próprio texto, vieram com naturalidade e se impuseram. É hipocrisia não reconhecer que palavrões fazem parte de nossa língua e têm sua razão de ser. No caso dos dois poemas, eram as palavras que cabiam. Seria uma desonestidade retirá-los.
4 - A maioria dos poemas aborda a realidade de maneira crua, dura, embora haja alguns textos em que um certo lirismo perdido aparece. Você acha que ainda há espaço para sensibilidade nos dias de hoje? Onde ela se manifesta?
Claro que esse espaço existe e o próprio fato de alguém escrever poemas e, do outro lado, alguém se interessar em lê-los, é prova disso. O mesmo ocorre com a música, com a literatura de ficção, com as artes plásticas, teatro, dança, cinema enfim, com toda a arte. Posso até ser chamado de ingênuo, mas creio que no dia em que as pessoas tiverem a chance de colocar mais arte e poesia em suas vidas, tanto fazendo como fruindo, viveremos num mundo mais humano e menos desigual. A arte tem a extraordinária capacidade de criar uma espécie de identificação, uma sintonia entre todas as pessoas, e isso costuma dar sentido à vida e deixa-la mais bonita e gostosa de viver. Dá para imaginar que uma pessoa que goste de poesia saia por aí explorando gente por causa de dinheiro, matando ou desrespeitando a vida dos outros? Quem faz isso está imbecilizado e desumanizado justamente porque, entre outras coisas, infelizmente ainda não descobriu a arte e a poesia.
5 - Alguns poemas mostram um eu-lírico que não acha espaço para expressar seus sentimentos. Este é um acontecimento típico das grandes cidades? Ou o lirismo se transformou em individualidade exagerada?
Creio que conseguir expressar sentimentos e ideias é uma necessidade humana básica, seja nas grandes cidades, seja em qualquer outro lugar. Concordo que num tempo como o nosso, de individualismo insano, onde a valorização exagerada do indivíduo impera, expressar ideias e sentimentos pode criar uma situação paradoxal: todos falam muito e ninguém escuta o discurso de ninguém. Por outro lado, como cada um só se interessa por si mesmo, a solidão é geral. A pessoa individualista é essencialmente solitária. Às vezes, até é chamada de “descolada”. Descolada porque não está aqui com todo mundo. Está sozinha, sei lá onde, ela e seu próprio umbigo. A tendência do individualista é se isolar dos outros e ficar falando com as paredes. É claro que a individualidade das pessoas é muito importante mas tento dizer que o individualismo exagerado pode fazer com que a pessoa pense que é o centro do mundo. Daí o sujeito ser levado, por exemplo, a dizer: “qual o problema de a Terra ficar sem água ou muito quente daqui a 70 anos? Até lá eu já morri!” Ou então a acreditar que tem liberdade para fazer o que quiser, e o resto que se dane. Infelizmente, os exemplos estão aí: gente que polui e destrói a natureza para aumentar seus lucros; gente que cria e vende produtos que comprovadamente viciam e trazem doenças; gente que anda a cem por hora dentro da cidade e acaba atropelando e matando; gente que explora o trabalho dos outros para ficar mais e mais rico, e assim por diante. A própria corrupção é uma forma distorcida de individualismo. Ora, é preciso dizer o óbvio: todas as pessoas, independentemente de idade, grau de instrução ou classe social, são responsáveis pela sociedade em que vivem, e isso implica deixar os interesses pessoais um pouco de lado e dar uma olhada em volta. O Brasil será um país melhor quando as pessoas deixarem de pensar exclusivamente nos próprios interesses e perceberem que é preciso lutar para construir uma sociedade mais racional, equilibrada e justa. Do céu, pode ter certeza, ela não vai cair.
6 - O poema “Pelos corredores do edifício” mostra uma pessoa tentando descobrir mais sobre si mesma. A busca do autoconhecimento faz parte do processo de criação? Como se tornar poeta?
Se já é difícil dizer o que é um poeta, quanto mais como se tornar um. Isso porque existem muitos tipos de poesia e de poetas e esses tipos muitas vezes não coincidem, se contradizem e discordam um do outro. A poesia é marcada pela diversificação, e é ótimo que seja assim. O que sei é que ela quase sempre lida com temas humanos concretos. Você falou em busca do auto-conhecimento. É um tema humano concreto e fundamental. Todo mundo, de oito, dezoito, trinta e oito, cinquenta e oito e oitenta e oito anos vive por aí tentando se conhecer melhor. Sempre digo que um cara de oitenta anos é um aprendiz, pois nunca teve essa idade antes e precisa aprender a lidar com ela. Todos nós estamos sempre amadurecendo, aprendendo, tendo novas experiências, portanto, mudamos o tempo todo. Isso significa que conforme o tempo passa, a gente precisa se conhecer de novo. Faz parte da condição humana essa busca constante de auto-conhecimento e por essa razão o tema é recorrente na poesia e em toda a literatura. Assim como as angústias; as paixões; a passagem do tempo; a morte; as questões morais; a busca pelo sentido da vida; a loucura; os conflitos entre os interesses individuais e os interesses da sociedade; as sempre complexas relações com o outro; os sonhos, desejos e delírios; a distinção do que é realidade e o que é fantasia, e por aí afora. Isso sem falar em todo tipo de experimentação com a linguagem que, na poesia, deixa de ser burocrática e oficial e passa a poder ser reinventada. Em resumo, eis porque a poesia é tão rica.
7 - Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Chico Buarque são alguns dos autores que aparecem citados (direta e indiretamente) em seus poemas. Em que eles influenciam os poemas e outros textos que você escreve? Quais outros autores são seus preferidos?
Poemas costumam influenciar poemas. A partir de uma coisa dita de tal forma, por tal poeta, você aprende um jeito novo de expressar seu próprio sentimento, ou uma idéia ou uma certa visão sobre a vida e o mundo. O texto poético tem a capacidade de abrir as portas e as janelas da gente. Sou leitor de poesia e tudo o que escrevo é marcado pelos poetas que li e leio. Além dos que você citou, leio e releio sempre Murilo Mendes, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e João Cabral de Melo Neto, para citar apenas alguns.
8 - Por que ler poesia?
Sei de gente que diz: “não gosto de poesia”, “não entendo poesia”, “poesia não serve pra nada” , “é coisa de mulher”, “é pra quem não tem o que fazer”... Confesso que tenho pena de quem pensa assim. Quando os poetas dizem: “Minha mão está suja/ É preciso cortá-la/ Não adianta lavar/ A água está podre”; “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”; “Vou me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”; “Fazer o que seja é inútil/ Não fazer nada é inútil/ Mas entre fazer e não fazer/ Mais vale o inútil do fazer”; “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo”; “Deram-me um corpo, só um!/ Para suportar calado/ Tantas almas desunidas/ Que esbarram umas nas outras/ De tantas idades diversas”; “Uma parte de mim/ é multidão/ outra parte estranheza, solidão/ uma parte de mim/ pesa e pondera/ outra parte delira”, eles não estão brincando. Estão tratando talvez dos temas mais importantes de nossas vidas, assuntos sobre os quais a gente muitas vezes nem consegue pensar direito, quanto mais colocar em palavras. Acho que a poesia é uma tentativa de colocar em palavras assuntos que não cabem em palavras. Por meio dela, compartilhamos nossos espantos, delírios, paixões, contradições, prazeres, medos, revoltas e dúvidas, ou seja, compartilhamos nossa humanidade. Isso não é pouco! Fico honrado se os poemas do meu livro forem lidos, mas convido o leitor a ler também Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Ferreira Gullar, autores dos trechos citados acima, todos eles extraordinários artistas da palavra.
📝 Entrevista publicada no livro Feito bala perdida e outros poemas, Ática, 2007.
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