Trago essas anotações após ter que encarar, abismado, em pleno século XXI, um cartaz de propaganda política racista francês, patrocinado por uma direita autoritária, fascista, xenófoba e não democrática que, infelizmente, parece estar se alastrando mundo afora, inclusive no Brasil. Por aqui, como sabemos, pululam, diariamente e desde sempre, notícias sobre atos racistas. Trata-se de total incivilidade e de uma prova de atraso moral.
O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) propõe a existência de um “processo civilizatório” humano em curso mas, antes de mais nada, já vai avisando: tal processo pressupõe, segundo ele, um constante embate entre as “forças civilizatórias” e as “forças descivilizatórias” (C.f. Escritos & Ensaios 1 – Estado, processo, opinião pública. Jorge Zahar Editor, 2006, e também do mesmo autor A sociedade dos indivíduos. Jorge Zahar Editor, 1994).
Por exemplo: a ciência foi capaz de desenvolver medicamentos que têm propiciado melhor qualidade vida às pessoas. Isso, segundo Elias, seria uma força civilizatória.
A mesma ciência criou técnicas e modelos de produção que poluem e destroem a saúde humana e o meio ambiente. Estes representariam forças descivilizatórias.
Isso vale para as doutrinas ditas de “direita” ou de “esquerda” radical, não democráticas e autoritárias por princípio, forças descivilizadas que infelizmente ainda proliferam por aí.
Para Elias, é preciso ser claro, não há nenhuma certeza de que, no final das contas, as forças civilizatórias vencerão.
Trata-se de um processo em construção, vivo e dialético, uma luta que se desenrola o tempo todo e da qual todos nós deveríamos participar.
O tal “processo civilizatório” proposto por Elias, entre outras características, implicaria
1) as transformações do comportamento humano na direção de um modelo de auto controle bem proporcionado, razoável, universal e estável;
2) a capacidade do ser humano de se identificar com outros seres humanos, independentemente do grupo ou da cultura a que estes pertençam.
Civilização significa, nesses termos, humanização, no sentido de construir a identificação, e não a diferenciação, entre os seres humanos. Identificação, é preciso avisar logo, tem a ver com convivência de diferenças e não com igualitarismo.
O processo de descivilização, para Elias, representaria o oposto:
1) o comportamento humano na direção de, por exemplo, modelos egocentrados e narcísicos, controlados ou motivados exclusivamente pelos próprios interesses;
2) a incapacidade do ser humano de se identificar com outros seres humanos que, neste modelo, são vistos sempre como dependentes do grupo (da cultura) a que pertencem e, portanto, são “diferentes” ou, pior, “inaceitáveis”.
Descivilização significa, nesses termos, desumanização, no sentido de um processo de diferenciação e não de identificação e convergência entre seres humanos. Racismo e xenofobia são bons exemplos de descivilização.
Por outro lado, para o filósofo democrata norte americano Richard Rorty (1931-2007) “...existe um progresso moral [que] se dá em direção à maior solidariedade humana (...) vista como a capacidade de considerar sem importância um número cada vez maior de diferenças tradicionais ( de tribo, religião, raça, costumes etc.) quando comparadas às semelhanças concernentes à dor e à humilhação – a capacidade de pensar em pessoas extremamente diferentes de nós como incluídas na gama do “nós” (em Contingência, ironia e solidariedade. Martins, 2007).
Em outras palavras, neste caso, ricos percebem que pobres são seres humanos e concidadãos. Alfabetizados percebem que analfabetos têm direito à escola. Brancos (ou homens) percebem que negros (ou mulheres) são igualmente humanos em literalmente todos os aspectos, e assim por diante.
Rorty, vale notar, ressalta a importância da literatura e da arte neste processo. Diz ele: “as descrições detalhadas de variedades particulares de dor e humilhação [por exemplo, nos romances e na poesia] – e não nos tratados filosóficos ou religiosos – foram as principais contribuições do intelectual moderno para o progresso moral” (Op. cit.).
E diz ainda: “...estremecer de vergonha e indignação ante a morte desnecessária de uma criança – uma criança com quem não temos laços de família, tribo ou classe – é a mais alta forma de emoção que a humanidade atingiu, ao desenvolver as instituições sociais e políticas modernas” (Op. cit.).
O “progresso moral”, para Rorty, – “uma questão de empatia e de capacidade de identificação ou de levar em conta necessidades alheias cada vez mais amplas” – , consiste, em outras palavras, em ampliar o número de pessoas que levam a sério e compreendem a importância dos desejos civilizatórios.
Eis porque essa consciência civilizada valoriza – e só poderia valorizar – a importância fundamental da Educação e da Democracia.
Vou tentar, a partir de Richard Rorty, dar exemplos de “ações civilizatórias” e de “progresso moral”:
– a disseminação da alfabetização.
– o abandono da escravidão.
– a repulsa ao racismo.
– a tolerância das diversas práticas religiosas.
– a educação das mulheres.
– a permissão de casamento de pessoas de etnias e culturas diferentes.
– a tolerância com as diferenças humanas, inclusive as sexuais.
– a rejeição a qualquer tipo de guerra.
– o combate à pobreza e a fome.
– a recusa a qualquer ação que possa resultar na humilhação de alguém. Nas palavras de Richard Rorty “o que nos une ao restante da espécie não é uma linguagem comum, mas apenas a susceptibilidade à dor, em particular, a um tipo especial de dor que os animais não compartilham com os seres humanos: a humilhação.”
– o desprezo à xenofobia.
– a luta pela igualdade das oportunidades entre todos os seres humanos.
– a convivência equilibrada e respeitosa do homem com a natureza, até porque o homem é parte da natureza. Neste sentido, destruir a natureza significa destruir o homem.
– a luta pela construção de uma civilização onde haja uma maior lealdade entre todas as pessoas e onde os interesses da coletividade coincidam, mais ou menos e na medida do possível, com os interesses de cada indivíduo.
Tanto o “processo civilizatório” como a noção de “progresso moral” têm tudo a ver com a Educação e deveriam, creio eu, ser assuntos de base, temas fundamentais, discutidos constantemente durante o período escolar, assim como, o tempo todo, pela própria sociedade. Pelo menos naquelas dispostas a formar cidadãos democratas que saibam pensar, saibam o que é a civilidade e tenham consciência da interdependência entre os seres humanos, como também da interdependência entre o homem e a natureza. Infelizmente, por enquanto, não é nada disso o que se vê.
🖼️ Desenho de “Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos”, Melhoramentos, 2015.
Quer ver todas as newsletters anteriores?
Um pouco mais sobre o meu trabalho
📚 Livros | 📄 Artigos | 💬 Entrevistas | 🖼️ Ilustrações | 🎶 Canções
Excelente e sempre oportuno, Ricardo!
Um debate urgente e necessário! Que demonstra o importante papel que a literatura e os livros podem e devem ter! Adelante, caro Ricardo!