Breves comentários sobre literatura de ficção e educação no contexto brasileiro
O artigo a seguir está no livro “Literatura e produção editorial: o ensino e a ficção” organizado por Vera Bastazin, Diana Navas e Cibele Lopresti Costa, publicado pela Palavras em 2024. Além do texto de apresentação, o livro tem 11 artigos que abordam assuntos relacionados ao tema Literatura e Educação. Trata-se de um trabalho excelente e qualquer pessoa pode ter o livro gratuitamente acessando
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É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português, e não havemos de entender o que diz?
Padre Antônio Vieira
O texto a seguir corresponde ao primeiro parágrafo da versão feita por mim de “João e Maria”, conhecido conto popular.
Era uma família muito pobre. Morava num casebre de um cômodo só, o pai, a mãe e doze filhos. A vida andava tão apertada que um dia o pai, vendo que não tinha mais comida em casa, chamou a mulher e disse:
— Não dá mais pra gente viver assim. João e Maria são nossos filhos mais velhos. Vou pegar os dois e largar no mato (Azevedo, 2008, p. 83-88).
Há cerca de dez anos, em pleno século XXI, participei de um evento educacional em Ilhéus, Bahia. Mal tinha chegado, ainda estava no aeroporto, apareceu um menino de uns 9 anos e pediu que o levasse para casa. Entendi que queria uma carona. Não! Queria ir para minha casa! Expliquei a ele que morava em São Paulo.
“Eu posso trabalhar”, respondeu. Pego de surpresa, perguntei sobre sua família. E seu pai? Foi o pai que pediu que fosse ao aeroporto ver se arranjava alguém que cuidasse dele.
Muitas vezes falamos de narrativas populares, contos de encantamento, contos de fadas ou contos maravilhosos (prefiro apenas conto popular), um tanto ingenuamente, como se tratassem de um abstrato “mundo de fantasia”. Entretanto, encontramos nessas narrativas jovens transformados em feras que lutam para reconquistar sua verdadeira identidade; mães ou madrastas que, quando percebem que suas filhas cresceram e tornaram-se moças, mandam matá-las; belas adormecidas há anos e que acordam quando beijadas por um certo moço, ou donzelas sequestradas e aprisionadas em castelos distantes por gigantões mal-intencionados, sem falar nos ardis de todo tipo utilizados pelo herói para enfrentar situações adversas.
Os contos populares costumam ser metáforas daquilo que mais desejamos e daquilo que mais tememos.
Para Mikhail Bakhtin, é preciso lembrar sempre, a fantasia é um instrumento de experimentar a verdade. Diz ele: “A fantasia não serve à materialização positiva da verdade, mas à busca [...] e, principalmente, à experimentação dessa verdade” (Bakhtin, 1997, p. 99).
Por falar em experimentar a verdade, vamos parar para pensar um pouco sobre o contexto brasileiro.
Como tenho dito por aí, em artigos e palestras, sinto que vivemos nos séculos XVIII, XIX, XX e XXI, tudo ao mesmo tempo.
Estamos mergulhados nas demandas contemporâneas, na pós-modernidade, na glorificação das subjetividades e das singularidades, ou seja, no individualismo, que, segundo o estudo e a crítica de Louis Dumont, em O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (2000), supõe o ser humano como um ser “livre, igual e autônomo”. Contudo, “livre” como, se vivemos em sociedades que têm por base regras e leis? “Igual” como, se é difícil imaginar uma vida em sociedade sem pensar em algum tipo de hierarquia? Indo além de altas teorias e abstrações egocêntricas, como imaginar, na prática, uma família, uma escola, um time de futebol, uma empresa, uma universidade, enfim, uma sociedade sem alguma hierarquia? Não confundir hierarquias obsoletas, falsas e impostas com a noção pura e simples de hierarquia vista como um modelo de organização de responsabilidades. E “autônomo” trata-se de outra abstração. O que na vida real, de fato, há de autonomia? Nem o câncer tem autonomia, pois sua existência depende de um corpo adoentado.
Por exemplo, sobre a ideia abstrata de “igualdade”, tão usada na política por populistas e demagogos, vejamos o que diz Hannah Arendt (2014, p. 218):
A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e da distinção. Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos – sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é, foi ou será – não precisariam do discurso nem da ação para se fazerem compreender. Sinais e sons seriam suficientes para a comunicação imediata de necessidades e carências idênticas.
Continuo com certas demandas contemporâneas: penso na recusa às “narrativas fundantes” (o desprezo a consensos a respeito da História, da Cultura ou da Arte); nos desconstrutivismos; no relativismo cultural; na transformação de fatos e evidências em “narrativas”; no prazer gostoso em ser de “vanguarda”, representar as artes “conceituais” e criar discursos experimentais e complicados. Isso tudo bem misturado a simulacros, fake news, propaganda e marketing, tendo como pano de fundo a sociedade de consumo ou a, assim chamada por Mario Vargas Llosa (2013), “civilização do espetáculo”.
Apenas como lembrete, é preciso levar em conta que, na sociedade de consumo, se o mercado for composto de imbecis, a indústria fica condenada a criar, fabricar, divulgar e vender imbecilidades.
Contudo, no mesmo ambiente, ao mesmo tempo e com o mesmo pano de fundo consumista e elitista, estamos cercados de semianalfabetos (70% da população? Mais?); de gente morando em favelas com esgoto a céu aberto; crianças e jovens fora da escola; crianças com menos de 10 anos trabalhando; pais de família vivendo de biscates; pessoas com 30 anos que já são avós; cercados pelo racismo e pelo desprezo por negros, indígenas e pobres (“não trabalham porque não querem” dizem alguns (!)); por doenças inexistentes em lugares civilizados (hanseníase, por exemplo); cercados por surreais notícias a respeito de trabalho escravo, por políticos corruptos soltos graças ao “foro privilegiado” (incluo aqui a prisão especial para quem tem “nível superior”), e até, de vez em quando, por gente (quase sempre da elite econômica) que é contra as vacinas, não reconhece o aquecimento global, desconfia da ciência, defende ideias autoritárias e, ainda por cima, acredita que a Terra é plana!
Como adotar uma posição diante de uma paisagem tão vergonhosa, contraditória, descivilizada, imoral, cruel e claramente não democrática?
Como desenvolver um trabalho, escrever para crianças, jovens ou adultos, tanto faz, diante de uma sociedade tão desequilibrada como a nossa?
Como o espaço é curto para discutir tantas questões, vou me ater a apenas um ponto e, mesmo assim, de forma bastante esquemática: diante desse quadro, que discursos, em suma, estão em jogo?
Conhecemos a síntese de Umberto Eco, em Obra aberta (1971, p. 54): a obra de arte é uma “metáfora epistemológica”.
Uma pessoa do povo talvez dissesse: o artista costuma cantar o sofrimento, as lutas, o trabalho, a sabedoria e os sonhos de toda gente.
Se a democracia exige a “convivência entre contraditórios”, a pessoa do povo dirá que um governo “pra valer” precisa aprender a lidar com as diferentes opiniões.
Tento dizer que existe um abismo discursivo separando as pessoas formadas e diplomadas – nós aqui agora – e o povo.
Abro parêntese com um trecho extraído de meu livro Abençoado e danado do samba: um estudo sobre o discurso popular (2013, p. 21):
Em palestra na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, em 1998, num encontro sobre literatura e educação, patrocinado pelo Proler – Programa de Incentivo à Leitura desenvolvido pela Biblioteca Nacional –, o advogado e escritor Diógenes da Cunha Lima contou a seguinte história (relatada também em Câmara Cascudo, um brasileiro feliz, Lidador, 1998): quando jovem, trabalhou como uma espécie de ajudante de Luís da Câmara Cascudo, pagava contas no banco, ia ao correio e ajudava a carregar livros. Certo dia, aproveitando-se da ausência do mestre, perguntou a Anália, analfabeta e empregada da casa há mais de cinquenta anos, se, na opinião dela, Câmara Cascudo era mesmo tudo aquilo que se dizia, um homem de grande cultura, um verdadeiro sábio. Segundo o relato, a mulher parou de varrer a sala, fez um muxoxo e, balançando a cabeça, segredou baixinho:
— É não! Estuda a noite inteirinha!
É possível que a primeira leitura do simpático episódio nos faça sorrir com benevolência diante da ingenuidade e ignorância de Anália, incapaz de compreender o valor e o teor da chamada alta cultura. Uma leitura mais atenta, porém, pode vislumbrar uma mulher adulta, competente, experiente e capaz, embora criada a partir de outros paradigmas.
É preciso compreender que, no caso de Anália, estamos diante de um determinado conjunto de premissas diferentes das que costumam ser aceitas e utilizadas pela cultura dominante.
Refiro-me a uma estrutura de consciência construída tendo em vista a valorização da experiência concreta e contextualizada e, ainda, a uma postura menos individualizada diante da vida, atitude que vê com desconfiança um aprendizado solitário.
Refiro-me a certa concepção de como a transmissão do conhecimento se dá, concepção esta inseparável das relações entre pessoas e também inseparável da oralidade e suas não poucas implicações (por exemplo, ao conhecimento guardado na memória usado por todos que não sabem ler. Ou ao recurso do improviso, típico de quem não tem manuais, nem bulas, nem pautas para seguir).
Refiro-me ao estranhamento diante de premissas e noções abstratas afastadas da experiência prática. À valorização da vida social e relacional. A uma certa moral bastante heterodoxa e relativista, enraizada na vida prática, nos costumes e nos interesses, e não em princípios e valores abstratos e teóricos (“comida pouca, meu pirão primeiro”). A uma identificação íntima entre a pessoa e os anseios de uma coletividade situada. Ao vínculo profundo com o acervo de conhecimento representado pelo senso comum (“em casa de enforcado, não se fala em corda”; “quem não sabe nadar, bota a culpa no rio”; “quando o rico mata o pobre, o defunto é quem vai preso”; “o melhor tempero é a fome” e por aí vai). À noção de que a existência humana é indissociável de hierarquias, como a da família, entre outras.
O episódio parece revelar que, para Anália, a verdadeira sabedoria jamais poderia ser adquirida solitariamente, através de livros, em escritórios, escolas e bibliotecas, mas, sim, necessariamente, por meio da experiência prática e concreta de vida, pela vivência de caráter pessoal, construída por meio de relações pessoais, assim como pelo ensinamento dos mais velhos ou mais experientes, pelo trabalho, pela memória e pela tradição. Isso sem falar nas inspirações de uma fervorosa, profunda e assumida religiosidade.
Anália, empregada doméstica, pobre e iletrada, era, como se vê, uma mulher do “povo”, e seu quadro de referências simbólicas poderia ser descrito como uma “cultura popular”.
Sorrimos talvez porque estamos acostumados a desprezar o povo, em geral considerado atrasado e ignorante, mas mais do que isso: sorrimos porque, como diz o filósofo John Searle (1984, p. 7):
[a] tradição ocidental sublinhou insistentemente mais a importância do conhecer do que do fazer. A teoria do conhecimento e do significado tem sido mais central para as suas preocupações do que a teoria da ação.
Sobre o assunto, a quem possa interessar, sugiro meu estudo sobre o samba, citado anteriormente, Abençoado e danado do samba: um estudo sobre o discurso popular (2013). Na verdade, boa parte deste artigo tem como base essa obra, focada na tentativa de compreender o discurso popular e seus paradigmas.
Em um país como o nosso, creio que seja fundamental a busca de pontes e identificações entre a cultura oficial e dominante e a cultura do povo. Tal ponte só será construída, creio, por meio de uma melhor compreensão do que pode ser um discurso popular.
Em um ambiente “culto” ou “oficial”, basta falar em “popular” e já se pensa em favelas, analfabetos, trabalhadores braçais e gente humilde. Pode ser que sim, que realmente se associe a esses elementos. Mas pode ser que não!
Por “popular”, estou aqui me referindo apenas a um discurso altamente diversificado que busca a comunicação imediata entre as pessoas.
Penso em um discurso encontrado em tudo o quanto é lado: tanto nas letras de samba, de rap e em parte relevante da canção popular, como em textos e poemas, inclusive parte da literatura infantil e juvenil, mas não só. Pensando bem, praticamente todos os escritores, poetas e cronistas volta e meia recorrem ao que estou chamando aqui de discurso popular.
Trago agora um depoimento dado em outro artigo “Literatura, discurso popular e modernidade”:
Na infância, tive a sorte de ter uma aproximação com a literatura muito interessante. Nasci em 1949. Na década de 50, a gravadora “Festa” lançou discos de poesia brasileira, alguns poemas declamados por atores e outros pelos próprios poetas. Um grupo de quatro atores, os “Jograis de São Paulo”, produziu discos antológicos. Tínhamos alguns desses discos em casa e meus pais adoravam ouvir. Na época, eu devia ter meus oito ou nove anos e ficava por ali escutando também. Meu primeiro encontro com a poesia de poetas extraordinários como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes, entre outros, deu-se por meio desses discos. Escutar “José”, “O caso do vestido” e “A morte do leiteiro” na voz do próprio Drummond; “Estrela da manhã” e “Vou me embora pra Pasárgada” com Manuel Bandeira; o belíssimo e surpreendente “Jandira”, de Murilo Mendes; “Dia da criação” de Vinícius de Moraes ou trechos de “Carnaval carioca” de Mário de Andrade declamados pelos maravilhosos “Jograis de São Paulo” foi uma experiência fundamental na minha vida.
Creio que percebi ali a força que um texto pode ter. Quero ser claro. Com algo em torno de 9 anos, não tinha competência para ler esses poemas. Mas escutar éoutra história.
Principalmente escutar um texto escrito com vocabulário público e compartilhável.
Mesmo pessoas que não tiveram a sorte de ouvir esses discos na infância, certamente escutaram letras de músicas por meio de rádios e discos, o que dá mais ou menos na mesma [...] (Azevedo, 2022).
Um exemplo, entre mil outros. Na mesma época, tocava no rádio “Me deixa em paz”, do grande sambista Monsueto. Diz a voz que canta, em resumo, que, se você não gostava de mim, não devia se aproximar nem me iludir e me deixar apaixonado. No final, pede a esse “você”, que estragou minha vida: me deixa em paz!
Qualquer criança entenderia, entende e pode se emocionar ou se identificar diante de letras como essa. Assim como vai se interessar e se identificar com, por exemplo, “Canção”, de Cecília Meireles (2013, p. 23). Diz a voz que fala que pôs seu sonho num navio e o naufragou com as próprias mãos. Conclui dizendo que, morto o sonho, agora está livre e em paz, com “meus olhos secos como pedras, e as minhas duas mãos quebradas.”.
Pessoas de sete, dezessete, trinta e sete, cinquenta e sete e setenta e sete ou mais, independentemente de grau instrução ou classe social, são, em princípio, capazes de compreender, se emocionar e serem levadas a refletir sobre esse belo poema. Sobre o assunto, sugiro a leitura do meu artigo “Infância, canção popular e educação”, de 2014.
Apenas a título de comparação, trago um trechinho do romance Catatau, de Paulo Leminsky (1975, p. 114):
Assim foi, e quando vimos mais uma manhã trascurva, tarde chegava aquêle já! Vier a acontecer, prevenido prevalece sôbre ingênuo. Sentir que vai acontecer, isto seja bem um quisto: aparecer como venho fazendo sem um tiritar nem um porquê. Um portento me erraptou, me deixando aqui fora, bôlo de gosma, pedra de lascar, a gema do ôvo, irmã gêmea da menina do olho, eu, atanásio, santinácio e outros companheiros de apanágio!
No ambiente moderno, individualista e tecnológico, nossa bolha cultural e nosso espírito dominante, se pensarmos na escrita, surgem alguns recursos típicos, como a experimentação e a fragmentação do discurso, que passa, muitas vezes, a ser constituído de frases e palavras desarticuladas, apresentadas de forma caótica, “fluxos de consciência”, discursos “caleidoscópicos”, manipulações sintáticas etc. Tendências, portanto, que pressupõem a necessária e compulsória “interpretação”.
O filósofo Jürgen Habermas, em O discurso filosófico da modernidade (2000), aponta para um aspecto interessante: o fenômeno moderno da “autocertificação”. Em outras palavras, é o desprezo, crescente em nossos dias, pelas instâncias consagradas de legitimação e reconhecimento, típicas de ambientes onde alguma hierarquia ainda está presente. Nesse caso, você pergunta: “Quem disse que isso é literatura?; e escuta como resposta: “Eu digo! Qual o problema?”.
Cito outros recursos apreciados pela cultura dominante:
1) a metalinguagem (o discurso reflexivo que fala de si mesmo);
2) a exposição na obra dos “andaimes” da própria obra e seu processo construtivo;
3) temas como a “incomunicabilidade entre as pessoas” ou o “sentir-se diferente de todos” (as vozes do valorizado outsider), entre outros.
E, claro, o descompromisso com o compartilhamento e a identificação e, mesmo, com a compreensão, por parte da maioria dos leitores.
Tudo isso me lembra um texto do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, adaptado e musicado por Adriana Calcanhotto na canção “Por que você faz cinema?”, cuja letra, a certa altura, fala em arrogantes poderosos boiando no escuro do cinema.
Não deixa de ser curioso: boa parte de nossa elite econômica – em geral técnicos formados e diplomados – boia diante de certos discursos tanto quanto a maioria da população!
Não se trata de juízo de valor ou de dizer o que é melhor ou pior. Trata-se apenas de reconhecer a existência de diferentes quadros de referência simbólica, premissas, paradigmas e modelos construtivos para a criação de textos.
Imagine nossos jovens, em formação como leitores, diante da valorização de textos herméticos e experimentais.
Já escutei, mais de uma vez, estudantes dizerem: “Acho que não tenho jeito para a leitura. Pra mim não dá!”.
Passo a elencar algumas tendências que, imagino, possam caracterizar o que estou chamando de “discurso popular”, um discurso que busca ser acessível à maioria das pessoas.
1. A utilização de linguagem e do vocabulário público, direto, acessível, familiar, compartilhável, que sempre busca ser compreendido com imediatez.
2. O discurso construído a partir de imagens visualizáveis descrevendo cenas e atos concretos e cotidianos, capazes de emocionar e gerar identificação. Ou seja, nada de conceitos abstratos, impessoais e descontextualizados.
3. O emprego em larga escala de algo que, como propôs Muniz Sodré (1998), poderia ser chamado um discurso “transitivo” – aquele que não fala com distanciamento “sobre” ou “do”, mas, sim e sempre, “a partir”, “no” ou “de dentro” do assunto. Em oposição, teríamos, segundo esse autor, o “discurso intransitivo”. Nesse caso, encontramos o texto que analisa de forma distanciada, o discurso que não vem de “dentro” do assunto, mas fala de fora “sobre” ele, muitas vezes de maneira impessoal.
4. O emprego da teatralidade: o tom lúdico; recursos enfáticos, como repetições de palavras no início ou no fim da oração; o tom exagerado; onomatopeias; o uso de gíria, frases feitas, trocadilhos, rimas e refrões etc.
5. A “concisão” absurdamente competente e nem sempre valorizada em um ambiente onde o discurso é marcado pela subjetividade e pela experimentação. Nos contos populares, ela é uma constante. São, em geral, histórias que tratam de assuntos humanos complexos contadas de forma concisa e clara. A extraordinária narrativa “O rei que ficou cego” – que tive o privilégio de recontar e publicar (Azevedo, 2000) – conta as peripécias de três irmãos que partem pelo mundo em busca de um remédio capaz de curar a cegueira de seu pai. Acompanhamos o que acontece com cada um deles, as viagens, os namoros durante a caminhada, a disputa entre os irmãos, as tentações, os desafios e perigos que enfrentam. Ao final, sabemos como o filho mais novo, por meio de ardis, depois de enfrentar mil perigos, inclusive os próprios irmãos, consegue encontrar e trazer o tal remédio. Tudo isso em pouco menos de 10 páginas. García Márquez certamente partiu de contos como esse para criar sua extraordinária literatura.
6. A tendência à narratividade: enredos transitivos, coordenados, lineares e acumulativos, com começo, meio e fim, entre outras características.
A soma desses recursos, e poderia citar outros, pode, creio, tornar o discurso popular extremamente poderoso e significativo, pois consegue se comunicar, gerar identificação e emocionar ricos e pobres, universitários e analfabetos, patrões e empregados, velhos, moços e crianças, gregos e troianos. Não é pouca coisa!
Se pensarmos em termos de política, civilidade e cidadania, então, nem se fala! Como sonhar com uma sociedade democrática e equilibrada em um ambiente habituado à valorização de discursos acessíveis apenas a uma minúscula elite elegante e descolada?
É preciso deixar claro: sabemos que o discurso da arte sempre foi ligado ao desvio da norma e a certa exceção. Mas quero ressaltar um modelo hegemônico que valoriza a exceção e despreza solenemente qualquer tipo de regra ou convenção. E mais: que tende a colocar a comunicação em segundo plano.
Como esquecer as lições de John Dewey, filósofo da Democracia e da Educação, que via a linguagem como um instrumento de caráter eminentemente relacional e social (e democrático!)? Disse Dewey (2002, p. 56): “Pense-se no absurdo de ensinar ou enxergar a linguagem como uma coisa em si.”.
Creio que, para realmente formar leitores, nossas escolas precisariam aprender a apresentar a literatura por meio das diferenças entre recursos com a linguagem utilizados.
Em uma sociedade individualista e consumista, marcada pela técnica, com fortes traços escravocratas como a nossa, creio eu, a valorização de discursos egocentrados pode resultar em arroubos narcisistas equivocados e autocomplacentes, simulacros seja das literaturas, seja das artes.
Pessoalmente, como escritor e como cidadão, espero que meu trabalho não contribua para a manutenção do fosso que separa nossa pequena e, por vezes, autocomplacente elite do nosso imenso e diversificado povo.
Referências
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
AZEVEDO, Ricardo. Armazém do folclore. São Paulo: Ática, 2000.
AZEVEDO, Ricardo. Cultura da terra. São Paulo: Moderna, 2008.
AZEVEDO, Ricardo. Abençoado e danado do samba: um estudo sobre o discurso popular. São Paulo: Edusp, 2013.
AZEVEDO, Ricardo. Infância, canção popular e educação. Ricardo Azevedo, 2014. Disponível em: https://www. ricardoazevedo.com.br/wp/wp-content/uploads/2014_ infancia_cancao_educacao.pdf. Acesso em: 13 set. 2023.
AZEVEDO, Ricardo. Literatura, discurso popular e modernidade. Rascunho: Jornal de Literatura do Brasil, ed. 268, ago. 2022. Disponível em: https://rascunho.com. br/ensaios-e-resenhas/literatura-discurso-popular-e-modernidade/. Acesso em: 12 set. 2023.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BOSI, Alfredo (org.). Padre Antônio Vieira essencial. São Paulo: Penguin/Companhia, 2011.
CALCANHOTTO, Adriana. Por que você faz cinema? In: A fábrica do poema. [S.l.]: Epic, 1994. Faixa 5.
DEWEY, John. A escola e a sociedade (1900)/A criança e o currículo (1902). Lisboa: Relógio D’Água, 2002.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1971.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEMINSKY, Paulo. Catatau. Curitiba: Edição do autor, 1975.
MEIRELES, Cecília. Antologia poética. São Paulo, Global, 2013.
MENEZES, Monsueto; AMORIM, Ayrton. Me deixa em paz. Intérprete: BATISTA, Linda. [S.l.]: RCA Victor, 1952. Disco 78 rpm.
SEARLE, John. Mente, cérebro e ciência. Lisboa: Edições 70, 1984.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. São Paulo: Objetiva, 2013.
📝“Literatura e produção editorial: o ensino e a ficção” organizado por Vera Bastazin, Diana Navas e Cibele Lopresti Costa, Palavras, 2024.
🖼️ A imagem é da capa do livro.
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